A seguradora brasileira Essor, do grupo francês Scor, um gigante mundial do mercado de resseguros, vendeu seguros agrícolas para o plantio irregular de soja no interior da Terra Indígena (TI) Monte Caseros, localizada nos municípios de Ibiraiaras e Muliterno (RS), a cerca de 250 quilômetros de Porto Alegre.
A venda foi subsidiada pelo Programa de Subvenção ao Prêmio do Seguro Rural (PSR), iniciativa por meio da qual o governo federal subsidia, com dinheiro público, uma parcela da aquisição do seguro. Os recursos do PSR são oriundos do Plano Safra.
Os seguros foram contratados entre 2020 e 2021 por dois homens que se declaram agricultores no Rio Grande do Sul, Pedemar Cirino Rodrigues e Sandro Vazzoler. A área segurada pela Essor dentro da TI Monte Caseros totaliza 110,7 hectares.
No início de 2022, a Essor rompeu o contrato com a dupla de forma unilateral, alegando que se tratava de terra indígena, um bem público da União. Nessa época, secas intensas no Sul do Brasil dobraram o volume de indenizações pagas aos fazendeiros, ameaçando a saúde financeira das companhias do segmento.
Ao tomar conhecimento do caso em setembro de 2023, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) acionou o Ibama e a Polícia Federal (PF) com um pedido de investigação por suspeita de usurpação do patrimônio público e arrendamento de terra indígena.
O chamado arrendamento ocorre quando um proprietário cede os direitos de uso de sua propriedade a outra pessoa ou empresa. Mas, no Brasil, as terras indígenas são bens públicos pertencentes à União e de usufruto exclusivo das populações originárias, logo não podem ser usadas em benefício de não indígenas.
Com essas considerações, um relatório técnico interno da Funai de 2023 afirma que o arrendamento segurado pela Essor tem indícios de ilegalidade. O Estatuto do Índio e a Constituição proíbem a prática de arrendar terras indígenas.
Os 4,5 mil hectares da TI Monte Caseros, portanto, só poderiam ser aproveitados economicamente pelos indígenas Kaingang que moram na área.
A Scor, empresa dona da Essor, diz que tem como pilares a sustentabilidade, o combate ao aquecimento global e a preservação da biodiversidade.
Ao segurar lavouras de commodities agrícolas em uma terra indígena, porém, a empresa ajuda a consolidar o desmatamento do pouco de Mata Atlântica que resta na TI Monte Caseros e no Rio Grande do Sul.
As conclusões desta reportagem são baseadas em documentos obtidos com exclusividade pelo Brasil de Fato: a petição inicial de uma ação judicial dos agricultores contra a Essor, além de ofícios enviados pela Funai à PF, ao Ibama e à Justiça de primeira instância, nos quais o órgão indigenista relata o caso.
Procurada, a defesa dos agricultores negou o arrendamento e chamou a prática de “parceria”. A alegação completa está no final do texto.
Por meio da assessoria de imprensa, a Essor afirmou, em nota, que “desde junho de 2021, possui um processo e ferramenta para identificação de terras indígenas e sob proteção ambiental, com base nos quais tem identificado tais situações e recusado as respectivas propostas de seguro, incluindo aquelas relacionadas à Terra Indígena Monte Caseros”. E reforçou que a empresa “possui uma política de sustentabilidade disponível em seu site, estando em constante aprimoramento das práticas ESG em suas operações”.
Consultadas, Funai e Superintendência de Seguros Privados (Susep) não se posicionaram até o fechamento desta reportagem.
Terra Indígena Monte Caseros, onde houve arrendamento, quase não tem cobertura vegetal nativa / Reprodução/Google Earth
Essor rescindiu contrato de arrendamento em terra indígena
Os próprios agricultores, Sandro Vazzoler e Pedemar Cirino, se identificaram à Justiça e admitiram o plantio irregular de soja em terra indígena. A confissão ocorreu em fevereiro de 2022, quando a dupla processou a Essor e pediu para ser indenizada em R$ 465 mil por danos morais e materiais.
Na ação, os supostos arrendatários da TI Monte Caseros reclamam que a seguradora rescindiu o contrato de forma unilateral no final de 2021, devolvendo todo o dinheiro pago até então pelos clientes, mas os deixando sem qualquer cobertura contra o prejuízo provocado pela estiagem que atingiu o Rio Grande do Sul em 2021.
Segundo Vazzoler e Cirino, o motivo apresentado pela Essor para rescindir o contrato sem aviso prévio foi de que as lavouras particulares estavam dentro da TI Monte Caseros. A justificativa da empresa é contestada pelos agricultores, que dizem ter informado à seguradora sobre a localização do plantio no momento da contratação.
“(…) Antes de contratar tanto o seguro objeto dos autos, quanto os demais que foram perfectibilizados, sempre foi enviado de forma prévia para a seguradora as coordenadas geográficas das lavouras, ou seja, sempre soube onde seria a lavora [sic] plantada e segurada”, escreveu na petição inicial o advogado Fernando dos Santos.
Com a intenção de comprovar que a seguradora tinha conhecimento prévio, os agricultores apresentaram à Justiça duas apólices de seguros contratadas anteriormente por Vazzoller, para lavouras de trigo e milho. Os documentos, acessados pelo Brasil de Fato, trazem coordenadas geográficas e imagens de satélite que colocam as áreas seguradas dentro da TI Monte Caseros.
“A parte autora [Vazzoler e Pedemar Cirino] já havia firmado outros contratos de seguro agrícola, das mesmas áreas de terras, com a seguradora ré. Não devendo prosperar a alegação apresentada pela mesma para rescindir os contratos em comento. Pois, a mesma no ato da formalização dos referidos contratos tinha pleno conhecimento de que aquela área segurada tratava-se de Área Indígena, inclusive juntou aos contratos os mapas das referidas áreas segurada”, prossegue o pedido do advogado Fernando dos Santos.
Funai alertou para agrotóxicos e sugeriu apreensão dos grãos
Ação judicial protocolada por Vazzoler e Pedemar Cirino tramitou na 3ª Vara Judicial da Comarca de Lagoa Vermelha, no Rio Grande do Sul. Em junho de 2023, o juiz Gerson Lira enviou um ofício à Funai perguntando se a lavoura em questão estava dentro da TI Monte Caseros. Em resposta ao juiz, a Funai confirmou a localização do plantio e encaminhou um novo ofício ao Ibama e à PF.
“Essa conduta [dos agricultores] levanta não apenas a suspeita de Usurpação de Patrimônio Público, como exemplificado de acordo com a legislação vigente, mas também a suspeita de possível prática de Estelionato”, diz ofício assinado pela coordenadora regional da Funai no Rio Grande do Sul, Maria Inês de Freitas, e encaminhado ao Ibama e à PF.
No requerimento, a Funai pediu que o maquinário usado no plantio ilegal seja apreendido e lembrou que o uso de sementes transgênicas e agrotóxicos em terras indígenas configuram crime ambiental, assim como o desmatamento e a poluição de rios e nascentes em áreas destinadas aos povos originários. “Uma outra possibilidade seria a apreensão dos grãos após a colheita nos silos de armazenamento”, apontou o órgão indigenista.
No ofício, a Funai lembra que pessoas externas às comunidades em territórios indígenas comprometem a integridade territorial e introduzem transgênicos e agrotóxicos que “agridem o solo e se espalham pelo ar onde estão sendo aplicados, trazendo risco, inclusive para a população e a fauna presente nos arredores”.
‘Não tem desculpa’
Paulo Barreto, pesquisador associado do Imazon e mestre pela universidade Yale (EUA), analisou o caso a pedido do Brasil de Fato. Segundo ele, não há desculpa para as seguradoras ou o governo federal não fazerem um controle adequado das áreas seguradas.
Bastaria, segundo Barreto, usar ferramentas de georreferenciamento e outras bases de dados públicas. “Fica evidente que a seguradora [Essor] não tinha um procedimento para fazer isso. Se tinha, houve alguma falha e depois tentaram solucionar [ao rescindirem o contrato do seguro na TI Monte Caseros].
Mapa pretende cruzar dados socioambientais na concessão de seguros
O Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA) afirmou ao Brasil de Fato que está implementando uma plataforma de cruzamento socioambiental e de monitoramento das informações das áreas seguradas pelo PSR.
“O sistema permitirá que as seguradoras participantes do PSR consultem previamente as condições socioambientais dos talhões que desejam assegurar com apoio da subvenção federal. Isso facilitará a identificação de áreas que cumprem os requisitos necessários e evitará a concessão de subvenções a áreas que não atendam aos critérios”, informou a pasta.
A plataforma permitirá que as seguradoras consultem previamente as condições socioambientais dos terrenos segurados, incluindo verificações sobre terras indígenas. Além disso, o Mapa prometeu fazer o “monitoramento contínuo” após a concessão da subvenção no seguro.
O objetivo é integrar bases de dados geoespaciais do setor agropecuário “com métodos avançados de modelagem e ciência de dados para gerar painéis dinâmicos e visualizações abrangentes”, declarou o Ministério.
Essor é uma das que mais acessa subvenção federal
Em 2023, a Scor Brasil foi a 6ª maior companhia do setor de resseguros no país, segundo o ranking Valor 1000, do jornal Valor Econômico. A empresa terminou o ano com R$ 702 milhões em seguros vendidos, com forte atuação no segmento do agronegócio.
Resseguro é o “seguro das seguradoras”, onde uma empresa resseguradora, como a Scor, assume a responsabilidade de indenizar a seguradora por danos de suas apólices de seguro.
A Essor, controlada pela francesa Scor, é beneficiada pelo Programa de Subvenção ao Prêmio do Seguro Rural (PSR), que subsidia há 19 anos com recursos do governo federal a contratação de seguros agrícolas.
Com o subsídio, as seguradoras conseguem manter a rentabilidade alta, enquanto oferecem preços menores aos clientes. A vantagem fez com que esse mercado – concentrado em poucas corporações – triplicasse desde 2018, segundo dados da Confederação Nacional das Seguradoras (CNseg)
Em 2023, a Essor foi a quarta empresa que mais acessou as subvenções do PSR, totalizando R$ 162,5 milhões em dinheiro público, equivalente a 17,4% do R$ R$ 933,1 milhões disponibilizado pelo Programa. Os dados são do Ministério da Agricultura.
Foi uma parceria e não arrendamento, diz defesa dos agricultores
Fernando dos Santos, advogado dos agricultores Pedemar Cirino e Sandro Vazzoler, alegou que seus clientes não fizeram arrendamento de terras indígenas, mas sim uma parceria com os indígenas locais.
Segundo Santos, esse tipo de parceria é comum na região devido à falta de maquinário e recursos dos indígenas para cultivar a terra por conta própria. O advogado afirmou que, na prática, os agricultores entram com maquinário e insumos, e depois dividem os lucros da colheita com os indígenas. Ele ressaltou que a situação não configura arrendamento, pois não há pagamento pelo uso da terra, mas sim uma divisão dos lucros.
A “parceria”, porém, choca-se com o Estatuto do Índio, que proíbe em terras indígenas “qualquer pessoa estranha aos grupos tribais ou comunidades indígenas a prática da caça, pesca ou coleta de frutos, assim como de atividade agropecuária ou extrativa”.
‘Parceria’ também é proibido, diz MPF
A Polícia Federal (PF) informou que não investiga arrendamentos de terras indígenas, com base no entendimento do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), que não tipifica a prática como crime, mas sim como um ilícito civil.
“O mero arrendamento, se isoladamente, não constitui crime e, assim, foge da esfera de atuação da PF”, comunicou a PF.
Diferentemente, o Ministério Público Federal (MPF) respondeu que não recebeu informações específicas sobre o caso da Terra Indígena Monte Caseros, mas ressaltou que “parcerias” entre indígenas e não indígenas também é uma prática ilícita, assim como o arrendamento, conforme estabeleceu o Estatuto do Índio e o artigo 231 da Constituição Federal.
“É vedado qualquer ato ou negócio jurídico que restrinja o pleno exercício da posse direta e do usufruto exclusivo pelo grupo indígena”, declarou o MPF.
Arrendamentos são “violência política do agronegócio”
“A Scor acelerou a sua jornada de sustentabilidade, fortalecendo o seu compromisso de investir num mundo mais sustentável”. A frase é do CEO da Scor, François de Varenne, e está em destaque no site oficial da empresa.
O grupo, porém, contraria sua própria política ao participar indiretamente do arrendamento de terras indígenas, prática que estimula o desmatamento, conflitos agrários e a ocupação ilegal de terras indígenas pelo agronegócio.
O combate ao arrendamento de terras indígenas é uma das pautas centrais defendidas por organizações dos povos originários. Para elas, a prática significa a violação da integridade territorial e da autonomia dos povos indígenas.
Longe de um problema pontual, o arrendamento de terras indígenas tornou-se comum no Rio Grande do Sul – e uma ameaça ao povo Kaingang. Nos últimos anos, o Ministério Público Federal (MPF) entrou com diversas ações para suspender contratos de arrendamento ou parcerias agrícolas nas TIs Nonoai, Serrinha e Ventarra.
“Isso porque, além de violar o direito ao usufruto exclusivo sobre os territórios tradicionais, a prática tem gerado disputas internas violentas pelo controle da exploração das terras e dos recursos recebidos”, declarou o MPF em maio do ano passado.
Kretã Kaingang, coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), já afirmou que no Sul do Brasil o arrendamento de terras indígenas foi estimulado pelo próprio Estado brasileiro a partir dos anos 1900.
“A partir da década de 80 o povo Kaingang começou a praticar arrendamento e os conflitos seguem até os dias atuais com o agravamento da violência política alimentada pelo agronegócio que arma milícias para perseguir e matar nossas lideranças”, escreveu Kretã Kaingang no site da Articulação dos Povos Indígenas (Apib).
Edição: Nathallia Fonseca