As parlamentares que foram alvos de ameaças de “estupros corretivos” em seus e-mails institucionais e pessoais se organizam para reagir jurídica e politicamente contra os ataques que sofrem desde o dia 14 de agosto.
Até o momento, registraram denúncias a deputada federal Daiana Santos (PCdoB-RS), as deputadas estaduais Rosa Amorim (PT-PE) e Bella Gonçalves (PSOL-MG) e as vereadoras Mônica Benício (PSOL), do Rio de Janeiro, e Iza Lourença e Cida Falabella, ambas do PSOL em Belo Horizonte.
Nos e-mails de cunho lesbofóbico, um homem que se identifica como um psicólogo afirma que o estupro corretivo “é uma terapia de eficácia comprovada que cura o homossexualismo feminino porque ser sapatão é uma aberração”. O suspeito também sugere ir às casas das parlamentares para fazer “uma demonstração sem compromisso”.
No Rio de Janeiro, a delegada Rita Salim, da Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi), onde a vereada Mônica Benício registrou queixa, afirmou que o caso será investigado como lesbofobia e crime eleitoral, uma vez que o criminoso utilizou o e-mail institucional da parlamentar para proferir as ameaças. As outras parlamentares também buscaram registrar o caso nas polícias dos respectivos municípios.
Coletivamente, as parlamentares acionaram o Ministério da Justiça, que decidiu federalizar o caso e levar o assunto para ser investigado pela Polícia Federal. Em nota, a pasta informou que, na última segunda-feira (21), o ministro Flávio Dino recebeu, em Belo Horizonte, algumas das parlamentares ameaçadas e encaminhou a documentação com as denúncias à Polícia Federal (PF) para a abertura do inquérito.
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Ameaçadas
Ao Brasil de Fato, a vereadora Mônica Benício afirmou que recebeu o e-mail em 14 de agosto por volta das 21h30. “Num determinado momento, o autor do e-mail chega a descrever como seria esse tratamento detalhadamente”, afirma a parlamentar.
“O teor da ameaça vem com um requinte de crueldade justamente porque toca às mulheres lésbicas não só em algo que nos fere tanto emocional quanto fisicamente, diretamente de um contexto social, mas também porque levanta a ideia de que a nossa orientação sexual é algo que pode ser corrigido, algo que pode haver uma cura terapêutica, entendido como uma doença ou como algo fora do conceito da norma”, analisa Benício.
Na avaliação da vereadora, “o homem e a sociedade machista entendem que a mulher é lésbica porque não encontrou um homem, um falo que a satisfizesse plenamente, então que, na verdade, a ausência da relação com o falo seria um desvio de conduta que, portanto, poderia ser remediado”.
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As ameaças também são um retrato do conservadorismo que se posiciona contra as mudanças no retrato do poder no Brasil, permeado por homens heterossexuais, cisgênero e brancos, na visão de Benício.
“Hoje há uma mudança, uma luta fruto de muita luta dos movimentos sociais, de muita luta da sociedade civil organizada, e é claro que isso vai incomodar essa norma, esse padrão de poder, porque presume que se tenha que abrir mão dos privilégios. A sociedade hoje não aceita e não aceitará a violência como método político, que não aceitará a barbárie como método de fazer política.
Para Rosa Amorim, que também foi ameaçada, trata-se de uma “tentativa de interferir na nossa atuação parlamentar. Isso demonstra também o resquício dessa política de ódio que vem sendo praticada desde o governo Bolsonaro. Uma autorização para discursos LGBTfóbicos, misóginos e contra as mulheres na política. É um e-mail que vem carregado de uma violência política de gênero sem precedentes”.
Amorim lembra que o autor dos e-mails chega a propor às parlamentares a criação de um projeto de lei que teria como finalidade institucionalizar o estupro corretivo. “No final, o e-mail diz que pode fazer uma mostra com nossos corpos e que sabe onde são as nossas casas”.
Iza Lourença chegou a receber mais quatro e-mails em 18 de agosto com ameaças de estupro e morte dela e de sua filha de apenas três anos. Diante da gravidade, Lourença e sua filha passaram a receber uma escolta da Guarda Municipal de Belo Horizonte por 24 horas todos os dias.
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Violência política de gênero
Na visão de Maria do Socorro Sousa Braga, cientista política da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), as ameaças são frutos de um cenário que vem sendo asfaltado ao longo dos últimos anos. As declarações de cunho homofóbico proferidas publicamente por nomes da extrema direita que chegaram a cargos públicos sem punições à altura do que espera a sociedade culminam em um sentimento de legitimação desses discursos.
No começo de agosto deste ano, por exemplo, o Conselho de Ética da Câmara dos Deputados rejeitou uma denúncia contra o deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG), que foi acusado de transfobia. No dia 8 de março, no Dia Internacional de Luta das Mulheres, Nikolas Ferreira colocou uma peruca durante sessão plenária na Câmara dos Deputados e acusou mulheres trans de estarem “tomando” o lugar de mulheres cis.
“Hoje eu me sinto mulher. Deputada Nicole. As mulheres estão perdendo seu espaço para homens que se sentem mulheres. Para vocês terem ideia do perigo de tudo isso, eles estão querendo colocar a imposição de uma realidade que não é a realidade”, disse. “Ou você concorda com o que estão dizendo, ou, caso contrário, você é um transfóbico, um homofóbico e um preconceituoso”, disse Nikolas Ferreira na ocasião.
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Para Braga, “essa violência tem uma trajetória que se acentua quando o bolsonarismo acaba levando essa violência a um ápice. Isso tem a ver justamente com outras ações que a gente já vem observando algum tempo no campo político, então que são reações muito fortes ao pluralismo e à diversidade de gênero, especialmente no âmbito do poder legislativo, que tentam se contrapor ao avanço justamente de políticas de gênero e sexualidade”.
“Os grupos conservadores estão tentando reduzir cada vez mais essas forças que conseguiram entrar na esfera política justamente para continuar defendendo a ampliação desses direitos ou mesmo a continuidade de direitos adquiridos ao longo aí desses últimos anos. É um cenário de disputa política em que os setores conservadores estão se utilizando da violência para mitigar esse avanço, ainda que seja um avanço muito pequeno”, complementa.
Hoje no Brasil existem 18 LGBTQIAPN+ como deputados estaduais e federais e senadores eleitos em outubro do ano passado, como aponta um levantamento da ONG VoteLGBT, que monitora e mapeia candidaturas dessa população em todo o país.
Pela primeira vez na história, o Brasil tem duas deputadas federais trans: Duda Salabert (PDT-MG) e Erika Hilton (PSOL-SP). Juntam-se a elas, na bancada LGBTQIA+, Dandara (PT-MG), que é bissexual, e Daiana Santos (PCdoB-RS), lésbica. Dos 18 eleitos, a maioria é mulher e apenas dois são homens. Todos são filiados a partidos de centro, centro-esquerda e esquerda.
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STF reconhece ofensa contra LGBTQIAPN+ como injúria racial
Uma semana após as ameaças às parlamentares, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu os atos de homofobia e transfobia como crime de injúria racial, por nove votos a um, em 21 de agosto. O reconhecimento foi solicitado pela Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT), que argumentou que a equiparação é essencial para garantir a proteção não apenas das pessoas LGBTQIAPN+, mas também do coletivo como um todo.
A associação também afirmou que instâncias judiciárias de níveis inferiores frequentemente interpretam que “ofensas homotransfóbicas de natureza racial proferidas contra grupos LGBTQIA+ se configuram como racismo, mas quando tais ofensas são direcionadas a um indivíduo pertencente a esse grupo vulnerável, elas não são consideradas como crime de injúria racial”.
De acordo com a perspectiva do ministro Edson Fachin, a injúria racial é considerada uma forma específica do crime de racismo, e a determinação da Suprema Corte não deve ser limitada. A punição para esse comportamento oscila entre 2 e 5 anos de detenção.
“Entendo que a interpretação hermenêutica que restringe sua aplicação aos casos de racismo e mantém desamparadas de proteção as ofensas racistas perpetradas contra indivíduos da comunidade LGBTQIA+, contraria não apenas o acórdão embargado, mas toda a sistemática constitucional”, decidiu Fachin.
Edição: Rodrigo Chagas