Em 4 de novembro de 2014, os ministros do Superior Tribunal Militar, a última instância do Poder Judiciário Militar, se reuniram em uma sessão de julgamento extraordinária em Brasília (DF) para julgar cinco militares acusados de maus-tratos a um cadete, que morreu após participar de um treinamento na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman).
Entre os acusados estava o então capitão Mauro Cid, que anos mais tarde se tornaria um dos assistentes mais próximo de Jair Bolsonaro na Presidência. Ele e os outros quatro militares, que eram os responsáveis pelo treinamento em questão, foram acusados de maus-tratos.
Os ministros decidiram por maioria que abrir uma ação penal contra os acusados seria “atentatório” à “dignidade humana” dos instrutores.
“Impor o ônus aos acusados de responder a uma ação penal, quando em juízo preliminar se constata ausência de justa causa, soa atentatório aos mais básicos direitos constitucionais individuais, dentre eles o da dignidade humana”, afirmou o ministro José Barroso Filho em seu voto, que foi seguido pela maioria de seus pares durante o julgamento.
Naquele dia, o tribunal entendeu que não havia justa causa, isto é, elementos mínimos suficientes, para abrir uma ação penal contra os cinco militares acusados pelo Ministério Público Militar de maus-tratos ao cadete que morreu após passar mal várias vezes durante o treinamento. Mauro Cid era instrutor de artilharia à época, sendo um dos responsáveis por acompanhar o exercício dos cadetes.
O Brasil de Fato teve acesso aos autos do julgamento, uma das acusações mais polêmicas enfrentadas por Cid antes de ele se tornar o ajudante de ordens de Jair Bolsonaro pelos seus quatro anos de governo. O julgamento foi a última tentativa do Ministério Público Militar de punir na Justiça os responsáveis pelo treinamento. A denúncia expõe relatos de humilhação e sofrimento do cadete Renan Mendonça Borges Gama, na época com 23 anos e que estava no terceiro ano do curso de Artilharia.
Pelo Código Penal Militar, que define os crimes e as punições para os atos ilegais cometidos por militares, o crime de maus-tratos tem pena prevista de 2 a 10 anos de prisão em caso de morte da vítima.
A Aman
Localizada no município de Resende, no interior do Rio de Janeiro, a Aman foi fundada em 1810 e é a instituição de ensino superior responsável pela formação dos oficiais combatentes do Exército brasileiro. Na prática, é a escola que forma os militares que vão atuar em cargos de liderança na força. “A Aman dedica especial atenção à formação ética e moral dos cadetes, no intuito de entregar ao Exército oficiais que se destaquem pela integridade, honradez, honestidade, lealdade, senso de justiça, disciplina, patriotismo e camaradagem”, diz a Academia em seu site.
Dos quatorze ministros que participaram da sessão, seis seguem no STM, incluindo o único ministro que votou a favor da tese do Ministério Público contra os militares, Artur Vidigal de Oliveira. Com a decisão, Cid e os outros acusados se livraram de responder a uma ação penal.
Passados quase dez anos do julgamento, todos os denunciados conseguiram progredir nas carreiras para postos mais altos da hierarquia militar e somente um deles entrou para a reserva, em dezembro de 2022.
Nenhum deles, no entanto, ficou tão famoso quanto o hoje tenente-coronel Mauro Cid, filho de um general com mesmo nome e que ganhou holofotes por ser um dos assistentes mais próximos de Jair Bolsonaro na presidência, no posto de ajudante de ordens.
Desmaios, alucinações e uniforme molhado
Ao analisarem o caso, a maioria dos ministros do STM, não viu uma relação direta entre o mal-estar sofrido pelo cadete ao longo do treinamento, que incluiu pelo menos três desmaios e alucinações, e a morte de Gomes no hospital Samer, em Resende (RJ), onde ele foi internado logo após concluir o treinamento.
Na denúncia, porém, o MPM reuniu vários elementos acusatórios, entre eles: depoimentos de 11 cadetes que estavam no treinamento; o depoimento de um capitão de artilharia; um laudo pericial sobre a morte; o depoimento do médico do hospital onde o cadete morreu; e o laudo do próprio hospital.
O documento produzido pelo hospital aponta que a causa da morte foram complicações decorrentes de uma condição relacionada à realização de exercícios intensos: a rabdomiólise, síndrome em que fibras musculares se rompem e liberam substâncias prejudiciais no sangue, que podem desencadear desfechos graves.
“É indiscutível que o cadete Renan Mendonça Borges Gama desmaiou diversas vezes, em diversos momentos, e queixou-se que não estava passando bem, a ponto de ter que ser carregado por um dos monitores em um determinado trecho”, diz a denúncia do Ministério Público Militar. “E ainda assim, todas essas circunstâncias não foram suficientes para que a médica, ora a 5ª denunciada, bem como todos os demais denunciados, promovessem seu afastamento do treinamento”, segue a acusação.
Renan estava entre os 400 cadetes da Aman que participaram do Estágio de Patrulhas de Longo Alcance com Características Especiais, realizado entre os dias 19 e 24 de setembro de 2011. Trata-se de um exercício em que os cadetes simulam diferentes situações de combate durante um trajeto entre várias fazendas pelo interior do Rio e São Paulo. No exercício, eles são submetidos a situações de estresse, desgaste físico e escassez para simular situações de conflito real no qual os militares precisam tomar decisões sob pressão.
Foi na subida de um pico no trajeto do treinamento que Renan Gama, também chamado de cadete 77, começou a passar mal de forma mais intensa e a desmaiar duas vezes. Ele ficou três minutos desacordado na segunda vez e precisou ser reanimado pelos companheiros. Mesmo depois de acordar e tomar soro, ele pediu para descansar 20 minutos e só conseguiu voltar a andar rumo ao ponto de controle número três (o percurso completo contava com cinco pontos de controle) com apoio dos outros cadetes, que acabaram carregando seu equipamento.
Mesmo chegando ao ponto de controle, porém, os responsáveis pelo treinamento negaram o pronto atendimento médico ao cadete, segundo os depoimentos. Ao invés disso, ainda de acordo com os relatos, o então major Bernardo Romão Correa Netto chamou o cadete de fraco, “playboy” e “filhinho de papai”, e determinou que os demais cadetes esvaziassem seus cantis de água no colega. Além disso, ele teria dito que o cadete só poderia receber atendimento médico se estivesse carregando o próprio equipamento e conseguisse ir andando sozinho até o posto médico, o que, segundo relatos dos demais cadetes, ele não estava conseguindo fazer.
Em depoimento no Inquérito Policial Militar para investigar a morte, o então cadete Caio César Alexandre Neves de Oliveira afirmou que Cid teria presenciado a situação e impedido que fosse trocado o uniforme de Renan Gama. “Disse que o cadete Gama estava encharcado, e que o capitão Cid não permitiu a troca do uniforme do cadete Gama”, diz trecho do depoimento apresentado pelo MPM.
Em outro ponto do depoimento, Oliveira afirma que não presenciou atendimento médico ao colega no posto de controle 3 e que, neste posto, “foi chamado pelo Capitão Cid, junto com o cadete Rodrigues, até uma posição em que estavam o cadete Gama e a médica, e que esta não falou nada depois que o capitão Cid falou que o cadete Gama continuaria no exercício”.
Outro cadete ouvido no âmbito da investigação, Luiz Henrique Bertoni Barbosa, chegou a afirmar que a médica do ponto de controle 3, a tenente Nathalia Knopp, teria retirado o uniforme de Renan e dito que “a única coisa que ele apresentava eram escoriações nas costas”.
“Disse a tenente Knopp, que na sua opinião, que (Renan) não estava consciente, e ela respondeu que ele estava consciente sim, que não queria falar e que, segundo ela, seria fraqueza psicológica dele”. Os relatos da situação dramática de Renan, feitos pelos colegas, seguem até o ponto final do exercício, quando os cadetes embarcaram em um trem de volta para a sede da Aman, em Resende. Nesta ocasião, um outro cadete, chamado Tulio Moreira, relatou em seu depoimento na investigação ter ouvido o cadete pedir ajuda a Cid.
“Foi ver o 77 novamente dentro do trem, onde o depoente ouviu o 77 falar com o capitão Cid: ‘Instrutor, estou passando mal!’, e o capitão Cid respondeu ‘estagiário, agora não posso fazer mais nada, a equipe médica já partiu'”, afirmou Tulio Moreira em seu relato.
Na época do treinamento, Cid participou da instrução no posto de oficial de Operações da Seção de Instrução Especial da Aman, marcando presença junto aos cadetes na chegada das missões todas as noites. Para o MPM, foi nessa condição que Cid teria presenciado o mal-estar do cadete Renan Gama e, ainda assim, decidiu mantê-lo no exercício.
A denúncia contra Cid e os demais militares foi apresentada ainda em 2013 na Justiça Militar de primeira instância no Rio de Janeiro. O juiz responsável por analisar o caso nessa etapa rejeitou a acusação levando em conta que o laudo de necropsia do Instituto Médico Legal do Rio não atribuiu a causa da morte à rabdomiólise. Além disso, ele entendeu que não haveria relação direta entre o treinamento que levou aos desmaios e alucinações do cadete e sua morte no hospital dias depois.
“Ademais, abstraindo-se, por claro, o depoimento dos cadetes, as demais provas não permitem a conclusão de que fosse previsível, objetivamente, aos denunciados, vislumbrar o quadro fisiológico apresentado pelo cadete no momento dos exercícios, nem se poderia, em decorrência, exigir uma diligência maior, por parte dos militares envolvidos no adestramento”, assinalou o juiz de primeira instância.
Na sequência, o MPM recorreu da decisão para o juiz-substituto, que negou o recurso do Ministério Público. Os investigadores, então, recorreram ao STM em 2014. O tribunal, porém, chancelou a decisão de recusar a denúncia.