Na Barra Seca, tradicional bairro de pescadores caiçaras de Ubatuba, no litoral norte de São Paulo, o manguezal vem perdendo espaço. Foram cerca de 7 mil m² de área perdida no bairro ao longo das últimas décadas, estima Jurandir da Silva, o Didi. Liderança caiçara local, ele faz o monitoramento da região e verificou novas faixas de aterramento de manguezal nos últimos meses.
“Este ano, como aumentou muito o desmatamento, com corte de mangue, guanxuma [espécies de plantas], rede de esgoto e cloro que está caindo aqui, o que diminui o oxigênio da água, o manguezal está morrendo mais rápido”, diz, em entrevista ao Brasil de Fato. Entre outros fatores de pressão está a construção de moradias irregulares.
Além da ameaça ao meio ambiente, a situação pode expor as casas do bairro a graves enchentes nos próximos dois anos, prevê a liderança. Sem os manguezais, cuja proteção é o mote do Dia Internacional para a Conservação do Ecossistema de Manguezais, celebrado em 26 de julho, a região perde uma barreira natural contra chuvas fortes e ressacas marítimas. “É uma tragédia anunciada”.
Didi defende uma intervenção com maquinário para evitar que a areia da praia siga avançando sobre o ecossistema. Moradores alegam que nada foi feito pela Prefeitura de Ubatuba para reverter a situação até o momento.
Em resposta à reportagem, a prefeitura afirma que o município, “através do contrato junto à concessionária Ubalimp, estará emitindo os serviços a serem realizados Limpeza Manual e Mecanizada de Orlas (exceto faixa de areia), Rios e Trilhas” e que “conta com atividade delegada junto à Polícia Militar Ambiental, podendo o cidadão acionar junto à prefeitura ou a própria PM em caso de crime ambiental.”
Ações de limpeza e de educação ambiental
Segundo Didi, diversas denúncias e solicitações foram feitas junto ao órgão público, mas as respostas e a fiscalização são insuficientes para preservar o manguezal. A liderança busca remediar a ausência do poder público recolhendo lixo de forma voluntária a cada quinze dias, na lua cheia e na lua nova, quando a maré baixa, e fazendo ações de educação ambiental no projeto Nativo Caiçara.
Só em garrafas PET já foram mais 5 mil unidades recolhidas, além de petrechos de pesca, embalagens e itens de lixo doméstico em quatro anos de iniciativa. Na praia, o caiçara expõe obras de arte produzidas com resíduos, além de banners informativos sobre a importância do bioma, lixeiras e uma bituqueira para a destinação correta do lixo no local.
Didi mostra painel usado em ações de educação ambiental na praia da Barra Seca, em Ubatuba (SP)/ Foto: Marina Rara/Brasil de Fato
Didi recebe alunos e faz ações em escolas da região compartilhar seus conhecimentos. Neste Dia Internacional para a Conservação do Ecossistema de Manguezais, está prevista uma ação de recolha coletiva de lixo. Sua motivação é manter vivo, para as futuras gerações, o ecossistema onde ele e sua família vivem há mais um século.
“Quando vejo o pouco do que resta desse manguezal cheio de esgoto, de lixo, de plástico, é como se tivesse uma faca ferindo o peito”, lamenta a liderança. “Estou nessa luta para salvar o pouco que ainda tem. Se vai dar certo, eu não sei. Mas eu vou morrer tentando.”
Risco local e global
A situação alarmante não se restringe a Ubatuba. No Brasil, a estimativa do Atlas dos Manguezais é de que um quarto desse ecossistema tenha se perdido apenas no século 20. Em todo o mundo, 67% dos manguezais acabaram ou foram degradados, segundo o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma).
O risco ao que ainda resta do ecossistema no planeta aumenta ano a ano. Segundo a International Union for Conservation of Nature (IUCN), 20% desse ecossistema é classificado em grave risco de extinção atualmente. A velocidade com que os manguezais estão desaparecendo é de três a cinco vezes mais rápida do que as perdas globais de florestas.
Um estudo da entidade alerta que metade dos manguezais do mundo corre o risco de colapsar até 2050. Segundo o documento, o aumento do nível do mar é a principal ameaça aos manguezais, seguido pela mudança climática e a maior frequência de eventos extremos, como enchentes e tempestades. Outros fatores de destruição são desmatamento, expansão urbana, construção de represas e poluição.
O ecossistema é responsável por sequestrar quatro vezes mais carbono da atmosfera do que as florestas continentais e podem estocar quantidades até dez vezes maiores, sendo crucial para combater a mudança climática. Barreira natural para o avanço do mar sobre a área de costa, ele também é essencial na adaptação a eventos extremos.
Impacto sobre as populações tradicionais
O manguezal ocupa cerca de 150 mil km² de área em 123 países pelo mundo. O Brasil é lar da segunda maior área desse ecossistema em todo o planeta, com 7% do total. A rica matéria orgânica que se acumula ali e a mistura entre água doce e salgada faz do manguezal um berçário onde se cria a maioria das espécies aquáticas, incluindo 78% dos peixes com valor comercial.
Didi deixou de viver da pesca para trabalhar como jardineiro e cuidador de casas de veraneio do bairro cada vez mais turístico. A pesca vem se tornando escassa devido à poluição e à expansão urbana que afetam o manguezal, rio e oceano. A população de Ubatuba saltou 50% em duas décadas.
“Não é que o peixe acaba. Ele migra para um lugar que tenha água limpa para ele viver. O lixo e o esgoto impactam muito nós, pescadores artesanais, porque a gente pesca em beira de praia, com canoa a remo”, diz. “Antes a gente pegava 600 kg de peixe com a rede. Hoje, não pega nem uma caixa. Não dá mais para vender. Daqui quatro ou cinco anos, a gente vai ter que comprar peixe se quiser comer.”
Didi explica que a praia é o palco principal e o manguezal é onde ficam os bastidores. “Se acaba o manguezal, automaticamente as praias também vão ficar mais poluídas”, afirma ele, sobre a função do manguezal de filtrar poluentes da água de rio e do mar e garantir o desenvolvimento de espécies marinhas. “O mar vai virar uma fossa gigante. O turista não vai vir mais para cá.”
Placa indica entrada e saída das tradicionais canoas caiçaras no Rancho Taoca, do Didi / Foto: Marina Rara/Brasil de Fato
A oceanógrafa Yara Schaeffer-Novelli, do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (IOUSP), que trabalha há mais de quatro décadas em defesa dos manguezais, fala do impacto da degradação desse ecossistema sobre a subsistência de trabalhadoras e trabalhadores de comunidades tradicionais.
São pescadores artesanais, como Didi, além de marisqueiras e catadores de caranguejo. “Os manguezais são territórios dos povos e comunidades tradicionais, que dependem, para sua subsistência, de estar próximos a esse ecossistema”, diz. “São profissionais há centenas de anos atuando junto aos manguezais sem causar prejuízo porque eles não extraem mais do que o próprio sistema é capaz de repor.”
“As raízes do mangue não são só importantes para o manguezal. As pessoas também criam raízes ali. Raízes de história, raízes que permitem que elas respirem”, diz o professor Alexander Turra, do IOUSP, coordenador da Cátedra da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) de Sustentabilidade Oceânica.
Ele ressalta a importância do ecossistema não apenas para a subsistência dessa população, mas também para manifestações culturais e práticas espirituais dos povos.
Didi é prova dessa importância. “Isso aqui é a minha vida, minha paz, meu santuário. Sem ele, não dá mais para viver no planeta”, diz. “O manguezal é um coração – e ele está batendo fraquinho. Se parar de bater, tudo acaba: o siri, o guaiamum, os lagartos, as cobras, os peixes”, lamenta.
O que é preciso para salvar o manguezal?
Além do projeto Nativo Caiçara, mantido por Didi, há diversas iniciativas que visam proteger o mangue e restaurar o que já foi degradado em território nacional. Elas são tocadas por populações tradicionais, entidades do terceiro setor, empresas e setor público.
Apesar da relevância das iniciativas, para se chegar à raiz do problema, são necessárias mudanças estruturais, defendem os especialistas. A solução engloba deter a expansão imobiliária na costa, fazendo valer restrições já previstas na legislação ambiental por meio de uma fiscalização mais efetiva, além de conter a poluição por esgoto e por resíduos sólidos em rios e mares.
Garrafa PET no manguezal da Barra Seca, em Ubatuba (SP) / Foto: Marina Rara/Brasil de Fato
Outro ponto crucial é mitigar a mudança climática, diminuindo bruscamente as emissões de gases de efeito estufa, lançadas na atmosfera com a queima do petróleo, por exemplo. A elevação média do nível, estimada em 4 milímetros por ano durante sete décadas pelo IOUSP, é um efeito associado à mudança do clima e uma das ameaças ao manguezal. O avanço do mar causa o aterramento desse ecossistema, como relatado por Didi, em Ubatuba.
Yara alerta para a necessidade de deter a aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 03, de 2022, que transfere a estados e municípios o controle sobre áreas costeiras e terrenos de marina, atualmente sob responsabilidade da União.
“Com PEC 03 estamos colocando em risco, em primeiro lugar, a subsistência das nossas comunidades costeiras”, diz a professora. Com a relatoria do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), a proposta está pronta para votação na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado desde o último dia 17 de julho.
Alexandre e Yara celebram o recém-aprovado Programa Nacional de Conservação e Uso Sustentável dos Manguezais do Brasil. Criado em decreto assinado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva no dia 5 de junho deste ano, o ProManguezal tem o objetivo de conservar, recuperar e garantir o uso sustentável da biodiversidade e dos serviços prestados por esses ecossistemas no país. “É um programa que vai amalgamar os esforços existentes”, diz Alexandre.
“A gente tem que colocar o manguezal na pauta, mudar a forma como a sociedade entende o manguezal e fazer com que esses projetos sejam efetivamente implementados com recursos apropriados e com acompanhamento desejado”, resume o professor. “E, para isso, é importante que o Tribunal de Contas da União e dos Estados estejam atentos a cobrar a implementação dessas políticas públicas.”
Edição: Nathallia Fonseca