Passados cinco anos do derramamento de óleo que assolou 11 estados litorâneos do Brasil, com destaque para pontos da região Nordeste, as marcas deixadas pelo desastre seguem embalando as dores de pescadores, marisqueiras e outros trabalhadores que dependem da fauna costeira para sobreviver. Os impactos são sentidos no bolso e no coração. É o que aponta o discurso do pescador artesanal Erivan Bezerra de Medeiros, que acumula quase 50 anos de pesca e cinco de frustração diante da inoperância do Estado brasileiro na atenção aos atingidos.
“Este é o quinto ano que viemos aqui a Brasília pra reivindicar os nossos direitos [diante] desse crime tão absurdo que aconteceu no país – um dos maiores até agora na América Latina, inclusive. Ainda não teve uma reparação, tanto para os pescadores que foram afetados quanto para ribeirinhos, comunidades tradicionais, os indígenas e quilombolas”, lamenta o pescador, que vive numa comunidade do litoral Sul do Rio Grande do Norte onde cerca de 200 trabalhadores ficaram de fora do auxílio anunciado pelo então governo Bolsonaro na época do desastre. Medeiros diz que já não é possível mensurar os estragos pessoais e profissionais gerados pelo óleo.
O desabafo do pescador dialoga com os números: na época do derramamento de petróleo, a gestão Bolsonaro prometeu um auxílio financeiro para 300 mil trabalhadores costeiros, mas o benefício abarcou apenas uma média de 60 a 80 mil pessoas, segundo cálculos do Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP). Somente no Nordeste, da Bahia ao Maranhão, o Ministério da Pesca e Aquicultura (MPA) contabiliza 460 mil trabalhadores do ramo. Formalmente, a categoria dos pescadores artesanais abrange marisqueiras, jangadeiros, ribeirinhos, extrativistas, pescadores quilombolas, indígenas e outros trabalhadores.
O vazamento, que teve início em 30 de agosto de 2019 e deu sinais até março de 2020, atingiu os nove estados do Nordeste e se estendeu ainda ao Espírito Santo e ao Rio de Janeiro. Foram mais de 3 mil km² de área afetada, segundo projeções do corpo técnico ambiental do Poder Executivo federal. Hoje engajado na campanha “Mar de Luta”, que busca reparação para a população prejudicada pelo problema, Erivan Medeiros afirma que a falta de justiça diante do caso tem provocado uma série de problemas ao segmento. “Tem muita gente que ficou doente por causa desse petróleo. Uns estão perdendo a visão, outros se suicidaram porque não foram reparados, e por aí vai. A nossa luta é essa”, desabafa.
Em Pernambuco, a pescadora Joana Mousinho vive drama semelhante. Do alto de seus 60 anos de pesca artesanal, ela conta que, apesar de ter expedido o Registro Geral dos Pescadores (RGP) desde a década de 1980 e ter sido a primeira mulher a presidir uma colônia de pesca no Brasil, não foi contemplada pelo governo Bolsonaro na distribuição do auxílio. Até hoje a pernambucana espera uma reparação por parte do Estado. “Na minha cidade, só uma pescadora recebeu.” Liderança destacada na coordenação da Articulação Nacional das Pescadoras, dona Joana realça que o derramamento de óleo marcou sua vida e a pesca artesanal para sempre.
“Desapareceram algumas espécies de peixe, os crustáceos diminuíram e [na época] o pessoal teve logo o cuidado de colocar barreiras de contenção pra ver se o petróleo não entrava [em toda a área] porque, se entrasse, ali tem um manguezal extenso e as mulheres vivem mais dos crustáceos, da coleta manual no manguezal”, conta. Ela cita ainda um conjunto de problemas de saúde que atingiram a comunidade local por conta do óleo, entre eles os problemas de pele.
“Até hoje tem as sequelas. No começo, quando apareceu o petróleo, ninguém sabia o que era e foram principalmente as mulheres que entraram na água pra tirar o petróleo. Muitas até hoje tem bolhas na pele com uma aparência de queimadura, feridas, manchas, etc. E nenhuma delas conseguiu atendimento médico pra tratar isso. Tem também as que têm abalo psicológico: elas ficaram sem conseguir entrar no mar, com medo de se queimarem e se machucarem de novo. Todo mundo ficou sem renda. Quando saiu o auxílio do governo, na minha cidade, só uma pescadora recebeu e foi porque o endereço dela ainda estava em outra cidade. É que ela tinha acabado de se mudar”, conta.
Cenário
Erivan Medeiros conta que os problemas gerados pelo vazamento de óleo se somam aos outros desafios que hoje batem à porta dos trabalhadores da pesca artesanal. É o caso das consequências da crise climática e da especulação imobiliária, esta última traduzida em pautas como a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 3/2022, a “PEC das Praias”. O texto está em análise no Senado e facilita a privatização de terrenos à beira-mar, pertencentes à União por meio da Marinha.
“A gente sente muito o impacto disso. Na minha terra, tem um empreendimento de economia de luxo, um resort, que atuou pra mudar o plano diretor da cidade e desmatar a mata atlântica, impactando as falésias. Eles construíram um condomínio com 38 lotes de luxo. Tem uma ação no Ministério Público pra suspender essa licença. A PEC das Praias, se for aprovada, acaba totalmente com a nossa vida no litoral. Apesar disso, a gente segue aqui na resistência. A gente vai continuar lutando contra tudo isso. O vazamento de petróleo, por exemplo, já tem cinco anos que aconteceu e, pra gente, parece que foram dez. Tudo isso deixa a gente triste e, às vezes, sem esperança, mas a gente segue na resistência”, ressalta o pescador potiguar.
Resposta
Autoridades do governo reconhecem a demanda represada naquilo que se refere à atenção às comunidades. “A gente queria muito, cinco anos depois dessa tragédia, estar aqui pra comemorar alguns avanços, mas, infelizmente, muita gente, quase 100% das pessoas, pescadores e pescadoras, não foram reparados”, admite a coordenadora-geral de Territórios e Integração de Políticas Públicas do Ministério da Pesca e Aquicultura (MPA), Kátia Cristina dos Santos Cunha, que acompanha o tema desde a época do desastre. A declaração foi dada durante uma audiência pública que debateu o assunto na Câmara dos Deputados na tarde de terça-feira (10).
A coordenadora-geral disse que o governo tem investido em Termos de Execução Descentralizada (TEDs), uma forma de transferência de créditos entre órgãos públicos para a execução de programas e projetos. Orçado em R$ 2,1 milhões, um deles busca elaborar e implementar políticas públicas de proteção de recursos e práticas culturais e socioambientais sustentáveis em comunidades de Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Bahia. Outro TED, desenvolvido em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), busca identificar problemas e potencialidades de comunidades de pesca artesanal e criar observatórios de territórios pesqueiros e centros de estudo de gestão de ecossistemas, emergências climáticas e racismo ambiental.
Kátia Cunha disse ainda que a pasta está em diálogo com a Fiocruz para a produção de um acordo de cooperação técnica para aquisição de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) para os trabalhadores do ramo, incluindo repelentes e protetores solares. “O ministério tem feito um esforço junto com a Secretaria da Pesca Artesanal, que é uma demanda histórica dos pescadores e pescadoras, para tentar de alguma forma reparar [os problemas]. Obviamente, não é o suficiente porque a demanda é muito grande”, disse a gestora, ao acrescentar que o governo tem se aberto ao diálogo com o segmento para entender as necessidades trabalhadores do ramo.
Posteriormente, o Brasil de Fato procurou o Ministério da Pesca e Aquicultura para tratar das queixas dos trabalhadores sobre a falta de um auxílio financeiro para socorrer o segmento diante dos impactos socioeconômicos gerados pelo vazamento de óleo. A reportagem questionou se o MPA tem atuado de alguma forma na busca por uma reparação financeira para os trabalhadores costeiros, se há alguma meta de público a ser atendido e qual seria o prazo para isso. A gestão respondeu que
“não houve uma demanda formal de reparação financeira por parte de entidades ligadas à pesca ao MPA” e que a pasta “tem atuado junto as essas comunidades, por meio de parcerias”.
Edição: Nathallia Fonseca