O Supremo Tribunal Federal (STF) retoma, nesta quarta-feira (12), o julgamento da ação que questiona a constitucionalidade de isenções fiscais que beneficiam a indústria dos agrotóxicos. A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), movida pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) desde 2016, argumenta que a política fiscal sobre esses produtos fere os princípios da capacidade contributiva, da seletividade, dos direitos à saúde e do cuidado com o meio ambiente.
Prejudicial ao solo, aos recursos hídricos, à biodiversidade e à saúde das pessoas, o uso intensivo de agrotóxicos na produção agrícola brasileira é incentivado pelo Estado através de políticas de renúncia fiscal e concessões de empréstimos milionários com juros subsidiados ao setor. A política, adotada há 27 anos, representa perdas de quase R$ 13 bilhões aos cofres públicos.
“A gente espera que com a pressão, com o debate que nós estamos fazendo, os ministros se sensibilizam realmente e declarem uma coisa que, para nós, é muito importante e óbvia que é inconstitucional: oferecer incentivos para usar uma substância tóxica, como são os agrotóxicos”, declarou Alan Tygel, integrante da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida.
Entenda o julgamento
Em outubro de 2023, o julgamento ocorreu de maneira virtual, com manifestações de votos de nove ministros, até que André Mendonça pediu destaque. Com esse pedido, o tema é levado do plenário virtual ao plenário físico da Corte. Na retomada do julgamento, a partir de hoje, todos os ministros deverão se manifestar novamente.
Até o momento, o relator da ação, o ministro Edson Fachin, havia votado pela inconstitucionalidade da isenção, enquanto o decano da corte, ministro Gilmar Mendes, pela manutenção.
Já o ministro André Mendonça adotou um posicionamento intermediário, considerando os benefícios fiscais parcialmente inconstitucionais, e estabelecendo um prazo de 90 dias para que o poder Executivo da União e dos estados realizem uma “adequada e contemporânea avaliação dessa política fiscal” dos 3.162 agrotóxicos permitidos no país. Outros seis ministros tiveram posições divergentes do relator.
Como funciona hoje
Atualmente, alguns insumos químicos de uso agrícola têm redução de 60% do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS) e isenção total do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI).
A Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) estima que estados e União deixaram de arrecadar R$ 12,9 bilhões em 2021, devido a essa política fiscal. O valor representa quase quatro vezes o orçamento do Ministério do Meio Ambiente para este ano, que é de 3,6 bilhões.
Além das renúncias fiscais, produtores de pesticidas e fungicidas químicos têm se beneficiado de empréstimos milionários com juros subsidiados pelo governo.
Um levantamento feito pela Repórter Brasil e a Agência Pública mostra que, nos últimos 14 anos, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) emprestou R$ 358,3 milhões a empresas do setor. Na prática, é o Estado financiando o uso de venenos na agricultura brasileira.
Impactos à saúde coletiva e ao meio ambiente
Segundo Camila Gomes, coordenadora de litigância da organização Terra de Direitos, que também é parte da ação, enquanto os grandes empresários do agronegócio ampliam suas margens de lucro a partir da renúncia fiscal, o país perde em relação à saúde coletiva da população.
“Há uma estimativa de que, no Brasil, a cada 1 dólar gasto na compra de agrotóxicos, 1,28 dólar são gerados de custos externos com tratamento de saúde por intoxicações agudas causadas por agrotóxicos”, afirma.
Os dados estão no Relatório Nacional de Vigilância em Saúde de Populações Expostas a Agrotóxicos, do Ministério da Saúde, publicado em 2018. O documento ressalta ainda que “de 2007 a 2015, foram registrados 84.206 casos de intoxicação por agrotóxicos no Brasil, desconsiderando aqueles em que não foram registrados e o alto índice de subnotificação no país”.
“Quem ganha com essa política fiscal são os grandes produtores e quem perde é a população, com destaque para as populações camponesas, ribeirinhas, indígenas, comunidades quilombolas, que são mais fortemente afetadas”, afirma Gomes.
Outro aspecto destacado pela coordenadora da Terra de Direitos é a questão ambiental. Para ela, as políticas de renúncia fiscal para agrotóxicos vão na contramão do enfrentamento à emergência climática, pelos severos danos que a utilização dos insumos químicos provoca ao meio ambiente.
“Há um descompasso entre essa política fiscal e as políticas públicas voltadas à transição ecológica, a transição agroecológica e as políticas públicas voltadas à observância pelo Estado brasileiro das suas obrigações internacionais relacionadas ao combate à emergência climática, à proteção do meio ambiente, da natureza como um todo”, critica.
O que diz a Constituição?
De acordo com a Fian Brasil, que também é parte na ADI, a caracterização dos agrotóxicos como produtos essenciais fere os princípios da seletividade e seu correlato princípio da essencialidade, já que são “comprovadamente danosos à saúde humana e animal, ao meio ambiente e aos recursos naturais”.
Em memorial jurídico distribuído aos ministros do STF nesta terça-feira (11), a Fian afirma que essa política afronta outros princípios constitucionais e direitos fundamentais, especialmente o Direito Fundamental ao Meio Ambiente Equilibrado, previsto no artigo 225 da Constituição Federal e o Direito Fundamental à Saúde, previsto no artigo 196.
“Os benefícios fiscais aos agrotóxicos caracterizam-se como verdadeiros incentivos fiscais, violando, inclusive, qualquer indicativo de política extrafiscal brasileira, como instrumento eficiente do Estado buscar equilíbrio necessário à sobrevivência e à aplicação dos princípios de justiça tributária ou justiça social e na indução dos comportamentos dos agentes econômicos pelo Estado”, diz o documento.
Chamada a se manifestar sobre a ADI impetrada pelo PSOL, a Procuradoria Geral da República (PGR) destacou a contradição da atuação federal “que, por um lado, estimula o uso de agrotóxicos e a manutenção de práticas e manejos de agroecossistemas convencionais por meio de incentivos fiscais e, por outro lado, adota como política nacional a transição agroecológica, a fim de otimizar a integração entre capacidade produtiva, uso e conservação da biodiversidade e dos demais recursos naturais, equilíbrio ecológico, eficiência econômica e justiça social”.
Há quem defenda
A Associação Brasileira dos Produtores de Soja (Aprosoja Brasil), que é amicus curiae na ADI, ou seja, parte interessada na ação, afirma que, caso a inconstitucionalidade seja reconhecida pelo STF, apenas no caso da soja, haverá um impacto de R$ 8 bilhões no custo aos produtores.
Já a CropLife Brasil, entidade que representa empresas de defensivos, biotecnologias, controle biológico, sementes e agricultura digital, argumenta que a cesta básica pode sofrer impactos, o que, para Camila Gomes, é uma falácia, já que o impacto de uma eventual alteração dessa política fiscal seria a redução da margem de lucro das empresas, sem afetar a produção de alimentos.
Alan Tygel explica que 84% dos agrotóxicos em uso no Brasil são aplicados para a produção das quatro principais commodities de exportação: soja, milho algodão e cana-de-açúcar, todas reguladas pelo mercado internacional.
Além disso, ele destaca que a reforma tributária, aprovada em 2023, isenta de impostos os produtos da cesta básica, especialmente os alimentos in natura.
“Pelo contrário, [os agrotóxicos] devem ser inseridos no chamado imposto seletivo, que é o imposto com vistas justamente a desincentivar o uso de álcool, cigarro, bebidas açucaradas”, defende.
“É bem importante a gente entender que agrotóxico barato incentiva seu uso e agrotóxico caro vai desincentivar o uso de agrotóxicos e incentivar uma transição agroecológica”, completa.
Edição: Martina Medina