“Foi a pior miséria que poderiam ter feito”, desabafa a artesã Ana Lucia Silva Vasconcelos, 57 anos, ao ser questionada sobre a privatização dos serviços de água e esgoto no Rio de Janeiro, em 2021.
Ela mora em Brás de Pina, Zona Norte da capital fluminense. Desde abril, acumula queixas sobre a empresa Águas do Rio, nova responsável por prestar os serviços que antes eram de responsabilidade da estatal Cedae.
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“Roubaram o hidrômetro que instalaram na minha casa enquanto eu estava viajando. Eu não soube da instalação nem do roubo porque estava fora. A empresa resolveu me multar e cobrar na minha conta 12 prestações de R$ 92”, relata, indignada. “O hidrômetro, que agora fica do lado de fora, na calçada, já foi roubado outras duas vezes. Fiquei mais de mês sem água porque eles não vieram consertar.”
A troca dos equipamentos de medição de consumo de água em residências e estabelecimentos comerciais foi uma das primeiras medidas tomadas pela empresa ao assumir o controle de parte do saneamento no Rio após a privatização. Depois da mudança, o número de queixas de consumidores contra a companhia disparou no Procon. Foram 454% de aumento nos dois primeiros meses de 2023 ante ao mesmo período de 2022.
“Está todo mundo indignado na minha rua”, acrescenta Ana Lucia. “Quando quer reclamar, fica falando com um robozinho pelo Whatsapp.”
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O Rio de Janeiro é hoje um dos 850 municípios brasileiros cujo saneamento é privatizado, de acordo com a Associação e Sindicato Nacional das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon). Em 2013, eram 213 cidades.
Esse crescimento, de 292%, está ligado à adesão de políticos a discursos de que a privatização melhora e até barateia os serviços. Em São Paulo, por exemplo, o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) trabalha para vender o controle da Sabesp prometendo reduzir a conta dos mais pobres e universalizar o saneamento. Em cidades em que a privatização já ocorreu, porém, promessas como essa nunca foram cumpridas.
Manaus: entre as piores do país
Manaus privatizou seu serviço de água e esgoto em 2000. Naquela época, a promessa também era levar a coleta de esgotamento a quase toda sua população. Mais de 20 anos depois, 75% dos moradores da cidade não têm acesso à rede de esgoto e quase 80% dos dejetos sanitários gerados no município não recebe tratamento – isto é, acabam sendo despejados diretamente nos rios que cortam a capital do Amazonas.
De acordo com um ranking divulgado anualmente pelo Instituto Trata Brasil, Manaus está entre as 20 grandes cidades do país com o pior saneamento. Em 2023, era a 83ª colocada numa lista de 100 municípios.
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Neste ano, a Câmara Municipal de Manaus chegou a realizar uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre o serviço de saneamento na cidade, que hoje é prestado pela Águas de Manaus. A empresa pertence ao mesmo grupo da Águas do Rio. As duas são controladas pela Aegea, companhia que tem como grandes acionistas os donos do Banco Itaú e também o fundo soberano de Singapura.
No ano passado, a Aegea lucrou R$ 457 milhões. Segundo padre Sandoval Alves Rocha, do Serviço Amazônico de Ação, Reflexão e Educação Socioambiental (Sares), ela presta um serviço precário à população de Manaus. “A maior cidade da Amazônia vive atualmente entre o escaldante calor e a falta de água nas residências. Nas periferias e comunidades indígenas a precariedade e a falta desses serviços já constituem normas sociais”, escreveu ele, em um artigo publicado em agosto.
Lucrando com aumentos
Em novembro de 2019, a Aegea publicou um balanço de resultados a investidores. Nele, a empresa informa que seu faturamento havia crescido quase 25% em três meses porque, em Teresina, sua subsidiária Águas de Teresina havia sido autorizada a cobrar mais pelo serviço de coleta de esgoto na cidade, privatizado em 2017.
Antes da privatização, clientes residenciais pagavam o equivalente a 50% da sua conta de água por conta da coleta de esgoto, de acordo com Dalila Alves Calisto, militante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) que escreveu um livro sobre o processo (Mercantilização da água: análise da privatização do saneamento de Teresina (PI), da editora Expressão Popular). Hoje, pagam 100%, o que causa insatisfação.
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Segundo Dalila, se a promessa era reduzir contas, o que aconteceu foi o contrário. Cobra-se mais hoje por um serviço que sequer é prestado. “Teresina tem mais 60% da população sem coleta de esgoto, pagando mais caro por algo que nem é feito.”
Hoje, Teresina ocupa 80ª posição no ranking do Trata Brasil. A professora e autônoma Franciene da Conceição Braga, 25 anos, mora na cidade há dois. Segundo ela, a falta d’água em sua casa é frequente. “Quando tem água de dia, já sei que vai faltar de noite. E a conta, neste mês, quase dobrou.”
Em Maceió, 91ª colocada no ranking, a empresa BRK foi autorizada em novembro a reajustar as contas de água em 8,79%. Segundo o Sindicato dos Urbanitários de Alagoas, a inflação no período foi de 4,91% – quase metade do aumento das contas.
O saneamento de Maceió foi privatizado em 2021. Lá, também houve reclamações em massa sobre contas de água após trocas de hidrômetros.
‘Privatização não resolve’
O sociólogo Edson Aparecido da Silva, secretário executivo do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (Ondas), diz que a privatização não funciona porque atende puramente à lógica do lucro.
Ele disse que ela não vai levar à universalização dos serviços de água e principalmente de esgoto porque isso obrigaria empresas a atender áreas que não são economicamente viáveis. “Sanear uma favela, por exemplo, envolve investimentos de urbanização. Você precisa abrir espaço para obras. Mas isso nenhuma empresa quer pagar”, diz ele. “Definitivamente, a privatização não é a saída para a universalização.”
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Silva também disse que concessionárias de água e esgoto estão interessadas em receber – sempre e cada vez mais – pelo serviço. Isso, em última instância, contraria o direito à água, reconhecido pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 2010. “Esse direito prevê o fornecimento de água mesmo para quem não pode pagar”, explica. “E que empresa vai querer prestar um serviço se não vai receber?”
Silva acrescenta que cidades, estados ou países no mundo já resolveram reestatizar serviços de água e esgoto privatizados. Desde 2000, foram 393, segundo monitoramento realizado pela entidade holandesa Transnational Institute (TNI). A lista inclui Berlim, Paris, La Paz, Maputo, Jaquarta e Buenos Aires. “O Brasil está na contramão”, disse Silva.
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O que dizem os envolvidos
O governo do Rio de Janeiro informou que a privatização do saneamento no estado prevê a universalização do serviço em 15 anos. Declarou também que investimentos realizados para isso já são visíveis. “Em alguns lugares, já existe 100% do esgoto tratado, por exemplo, devido aos investimentos que já puderam ser implementados, caso da Ilha de Paquetá.”
A Águas do Rio foi procurada pelo Brasil de Fato para comentar as queixas sobre seus serviços. Não respondeu à reportagem.
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O BdF também pediu informações à Àguas de Manaus e Águas de Teresina. As duas empresas também não responderam.
A prefeitura de Teresina e de Manaus também foram procuradas. Não se pronunciaram.
A BRK, de Maceió, informou que a troca de hidrômetros na cidade é uma obrigação da empresa. “Os hidrômetros têm uma vida útil de cinco anos, em média. Na Região Metropolitana de Maceió, existiam casos de hidrômetros instalados em 1992, que estavam com a capacidade de medição comprometida. É por isso que, em alguns casos, os clientes podem perceber variação no consumo registrado após a troca do aparelho”, informou.
Sobre o aumento das contas, a BRK declarou que Agência de Regulação de Serviços Públicos do Estado de Alagoas (Arsal) realiza anualmente a revisão da estrutura tarifária, levando em consideração a reposição inflacionária, bem como custos de mão-de-obra, da energia elétrica e dos produtos químicos para fixar reajustes.
O governo de Alagoas não se pronunciou sobre a privatização.
Após prometer redução da tarifa de água ao defender a privatização da Sabesp, Tarcísio de Freitas disse na segunda-feira (11) que ela pode, sim, aumentar. “A tarifa vai subir, mas a privatização garante que ela vai subir num valor menor”, declarou.
Edição: Thalita Pires