O aumento no consumo de produtos ultraprocessados está gerando um custo bilionário à economia brasileira. Mais especificamente, o Brasil perde R$ 10,4 bilhões todos os anos com mortes e doenças agravadas pela ingestão contínua de ultraprocessados. Esta é a principal conclusão de um relatório lançado nesta quinta-feira (21) pela ACT Promoção da Saúde, organização que atua na defesa de políticas de saúde pública.
Segundo o estudo, quase o total desse montante (R$ 9,2 bilhões) responde pelas perdas econômicas causadas pela morte prematura de pessoas em idade produtiva, o que gera uma baixa no mercado de trabalho. O número reforça os achados de um estudo publicado em 2022 no American Journal of Preventive Medicine, que estimou a morte de 57 mil brasileiros por ano por doenças intimamente ligadas com o consumo de ultraprocessados. O número corresponde a 10,5% das mortes por todas as causas no país.
Os achados foram novidade até para quem esteve à frente do estudo. “A parte dos custos nos surpreendeu bastante porque estamos falando de apenas 20% das calorias vindo de ultraprocessados — o impacto que isso tem no aumento de fatores de risco é muito maior proporcionalmente falando,” diz o biólogo Eduardo Nilson, autor do relatório e pesquisador do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens/USP) e da Fiocruz Brasília. Ele também é autor do estudo que estimou as 57 mil mortes.
Dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) do IBGE de 2017-2018 mostram que cerca de 20% das calorias consumidas pelo brasileiro adulto — ou 400 em uma dieta de 2.000 calorias diárias — vêm de produtos ultraprocessados. O consumo desses produtos entre os brasileiros aumentou 5,5% na última década. “Quando se fala de consumo de ultraprocessados, falamos da proporção em média que estes produtos ocupam na dieta do brasileiro”, explica Deborah Carvalho Malta, professora da Escola de Enfermagem da Universidade Federal de Minas Gerais. Especialista em inquéritos epidemiológicos, Malta coordenou o Sistema de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel) entre 2006 e 2015.
Fechando a conta dos R$ 10,4 bilhões em perdas, o estudo também estimou que hospitalizações, procedimentos ambulatoriais e farmácia popular geram um custo de quase R$ 1 bilhão por ano (R$ 933,5 milhões) ao Sistema Único de Saúde, o SUS. Além disso, ainda há os custos previdenciários — de aposentadorias precoces e licenças médicas — e os custos por absenteísmo, causados por internações e licenças médicas: somam R$ 263,2 milhões ao ano. O prejuízo totalizado, segundo o estudo, é duas vezes o valor investido anualmente no Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e 300 vezes o que é investido no programa de Cozinhas Solidárias.
O prejuízo pode ser ainda maior
“A grande questão é que estas estimativas, por mais assustadoras que pareçam, ainda são bastante conservadoras”, diz Nilson. Neste tipo de modelagem numérica, explica ele, pesquisadores têm a possibilidade de escolher muitos parâmetros para colocar na equação. “Mas não dá para colocar todos, então a gente escolhe os que são mais seguros para ter resultados robustos.” Neste caso, não foi possível analisar todas as faixas etárias da população, todos os gastos com tratamentos e remédios nas redes pública e privada e nem todas as doenças relacionadas ao consumo de ultraprocessados. O recorte precisou ser bem menor que isso.
“Há 32 doenças catalogadas como decorrentes do consumo de ultraprocessados, mas neste estudo só foram consideradas três delas e suas complicações associadas — obesidade, diabetes e hipertensão,” observa Priscila Diniz, coordenadora técnica da ACT. Além disso, a pesquisa se ateve à análise de adultos acima de 20 anos e, em relação a gastos com tratamentos e medicamentos, o estudo incluiu apenas dados do SUS e da rede de farmácias populares. “Outra limitação é que, em termos de absenteísmo no trabalho, o estudo considerou apenas trabalhadores formais. Então podemos dizer que sim, estas estimativas são de fato muito conservadoras”, diz Diniz — mais da metade da força de trabalho no Brasil está na informalidade.
O consumo de ultraprocessados aumenta fatores de risco para doenças graves como diabetes e diversos tipos de câncer, mas também compromete a qualidade de vida de formas mais insidiosas, diz Natália Gomes Gonçalves, professora do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP. Ela trabalhou em um estudo publicado ano passado na revista JAMA Neurology que apontou que o consumo de ultraprocessados aumenta o risco de declínio cognitivo acentuado. A conclusão veio da análise de dados do Estudo Longitudinal Brasileiro de Saúde do Adulto (Elsa-Brasil), que acompanhou cerca de 11 mil pessoas entre 35 e 74 anos entre 2008 e 2017.
“Esse declínio acontece com a idade, mas com o consumo de ultraprocessados é mais acelerado”, diz ela. Participantes que tinham pelo menos 20% das calorias vindo de ultraprocessados “tiveram um declínio 25% mais rápido nas funções executivas — as que usamos para fazer planejamento e nossas ações diárias — em comparação a pessoas com dietas mais saudáveis”. 20% de calorias a partir de ultraprocessados é a média no Brasil hoje. Olhando para as tendências de consumo dos brasileiros, os custos aos cofres públicos podem ser ainda maiores no futuro próximo, agravados pelas desigualdades sociais, diz Malta.
“O consumo de feijão [in natura, preparado em casa] é um marcador de alimentação saudável e está em queda em todas as séries, tanto do Vigitel quanto da POF. Essa queda tem sido maior entre quem tem menos escolaridade”, observa a professora. A participação relativa de ultraprocessados na dieta vem aumentando nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, e especialmente entre os mais pobres. “Nas regiões Norte e Nordeste, os ultraprocessados respondiam por cerca de 14% em 2017-2018 e passaram a responder por 17%”, conta Malta, com base na POF de 2017-2018.
A professora observa que, no que tange a frutas, legumes e hortaliças, o consumo aumenta até 2014 e 2015, e depois começa a cair. “O consumo entre as mulheres, por exemplo, começa em 23% (antes de 2014), chega ao pico de 28,9% em 2015 e depois retrocede para 23%.” Para ela, os números têm uma relação direta com as crises econômica e democrática que o Brasil tem enfrentado desde então. “Além da quebra da democracia, tivemos também uma mudança de modelo econômico, com arrocho salarial, desemprego e política de austeridade. Então, os alimentos protetores como frutas, legumes e hortaliças acabam ficando muito caros para manter na alimentação regular. Além do mais, [nestes anos] tivemos menos educação para a saúde.”
Deborah Malta conta ainda que na próxima POF será possível ver melhor os impactos da pandemia sobre o consumo dos brasileiros. “Os dados que temos vão até 2019″.
Segurança alimentar
Os dados encontrados por Nilson vêm na esteira das discussões da reforma tributária em discussão no Congresso Nacional. A tributação sobre consumo ainda não é uma questão fechada e brechas na proposta em tramitação garantem uma redução de 60% no imposto de produtos como macarrão instantâneo, comida congelada e salgadinhos. Há quem diga que aumentar as alíquotas coloca em risco a segurança alimentar e nutricional do brasileiro. “Mas isso é uma falácia. É preciso reforçar o arroz com feijão já presente no prato do brasileiro e ajudá-lo a diversificar sua dieta com verduras e legumes. O regime de tributação vai ser essencial para isso”, diz Nilson. Malta concorda com o colega.
“Ultraprocessados não garantem segurança alimentar, antes pelo contrário. Se, por um lado, há um declínio no número de mortes por desnutrição com o consumo destes produtos, por outro há um aumento de mortes por obesidade”, conta ela, com base em um estudo que liderou comparando estas mortes entre 1990 e 2019 em todo o Brasil. Esses dados servem para alertar os parlamentares sobre a importância de se manter o imposto seletivo sobre bebidas açucaradas e não apenas sobre os refrigerantes, diz Priscila Diniz.
Para ela, o imposto seletivo é uma medida com boa taxa de retorno porque “não apenas diminui a exposição da nossa população a esses produtos, mas também ajuda a recompor o financiamento do SUS nos estados e nos municípios. Mesmo que o imposto seletivo não tenha fins arrecadatórios, o potencial arrecadatório desse imposto é conhecido”, diz ela.