Neste sábado (24), Marçal de Souza Tupã’i, impulsionador da organização dos povos indígenas como movimento social no Brasil e referência da luta dos Guarani Kaiowá e Ñandeva no Mato Grosso do Sul (MS), faria 103 anos. No fim de novembro, quando completaram 40 anos de seu assassinato, sua família entrou com um pedido de reparação para a Comissão de Anistia do Ministério dos Direitos Humanos, setor destinado a analisar pedidos de indenização a pessoas perseguidas pela ditadura militar.
“A expectativa é que haja deferimento. Marçal se enquadra em todas as hipóteses, há provas de que ele foi monitorado por órgãos de segurança governamentais e sofreu agressões motivadas por questões políticas”, atesta o procurador do Ministério Público Federal do MS, Marco Antônio Delfino.
Executado com cinco tiros na porta da sua casa na aldeia Campestre em 1983, Tupã’i atuava, desde o início dos anos 1970, na articulação nacional dos povos originários. Foi um dos fundadores, em 1980, da União das Nações Indígenas (UNI). Em âmbito local, além da luta por território, enfrentava a extração ilegal de madeira das reservas, o tráfico de meninas indígenas e a política indigenista do governo militar.
“O caso marcou muito os Guarani Kaiowá na época e até hoje representa de forma simbólica a luta do nosso povo por território. E também a criminalização e morte de muitas lideranças, daquele tempo até agora”, destaca Eliel Benites.
Nascido na mesma terra de Marçal, Benites é diretor do Departamento de Línguas e Memória do Ministério dos Povos Indígenas (MPI). “Recebemos o pedido da família [de Marçal] e há a perspectiva de retomada de um processo judicial para reparar essa violência histórica”, expõe.
O discurso ao Papa em plena ditadura
Magro e pequeno, com pouco mais de um metro e meio, Marçal Tupã’i impressionava quando falava. O mais emblemático dos seus discursos, aquele que teve reverberação internacional, foi em julho de 1980. Na varanda do palácio episcopal de Manaus (AM) diante de uma multidão, Marçal falou para o Papa João Paulo II, que visitava o Brasil.
Em rede nacional e sob o regime militar, Marçal estava como representante, segundo ele mesmo disse, das “nações indígenas que habitam este país, que está ficando tão pequeno para nós e tão grande para aqueles que nos tomaram esta pátria”.
“Somos uma nação subjugada pelos poderosos, uma nação espoliada, uma nação que está morrendo aos poucos sem encontrar caminho, porque aqueles que nos tomaram este chão não têm dado condições para a nossa sobrevivência”, disse.
Como que falando do próprio destino, citou a “tristeza pela morte dos nossos líderes assassinados friamente” e afirmou que a voz dos indígenas “é embargada por aqueles que se dizem dirigentes deste grande país”. O discurso foi interrompido algumas vezes pelo público gritando “João, João, o índio é nosso irmão”.
“Dizem que o Brasil foi descoberto. O Brasil não foi descoberto, não, Santo Padre, o Brasil foi invadido e tomado dos indígenas. Esta é a verdadeira história”, declarou Marçal.
“Ele tinha o dom da palavra”, descreve sua filha, Edna Souza. “Sempre um pai muito presente, ele falava que a gente tinha que estudar para conhecer também o modo de vida dos não indígenas, para a gente sobreviver e achar nosso espaço entre esses dois mundos”, relata Edna.
Ela tinha 33 anos quando seu pai foi morto. “Como ele vivia no enfrentamento com o governo militar, denunciando os desmandos dos dirigentes do governo local e mesmo a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), que era comandada por militares, a gente tinha receio que uma hora alguém ia fazer uma maldade. Mas não sabia que ia ser tão violenta”, conta Edna. “Na linguagem guarani a gente diz que ele tinha nẽ’ẽ, é aquele que tem a fala da alma, a palavra verdadeira”, explica.
Marçal era silencioso, de acordo com o teólogo Paulo Suess que, em 1980, enquanto secretário do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), esteve junto com o líder indígena em Manaus. “Mas quando falava em público, era como se fosse tomado pelos espíritos dos ancestrais”, diz. Na ocasião, ambos viajaram juntos de ônibus até Porto Velho. Foi aí que Suess teve a dimensão da repercussão do discurso televisionado.
“Nas paradas de ônibus, nos botequins, o povo reconhecia Marçal”, relata Paulo Suess: “Teve um impacto também porque era ditadura militar e nós não estávamos acostumados a ouvir uma palavra tão clara, forte e crítica na televisão”.
Brizola como “inimigo dos indígenas” e uma semente do MST
“Eu não sei bem se o Papa entendeu tudo o que foi dito, mas ouviu atentamente”, sorri Paulo Suess, autor de uma das fotos mais conhecidas deste momento. O pontífice recebeu, ainda, um documento com o nome de “inimigos” dos povos indígenas no Brasil. Entre juristas, deputados, governantes e outras autoridades, constava até o nome de Leonel Brizola (PDT).
Quando governou o Rio Grande do Sul entre 1959 e 1963, Brizola criou o Instituto de Reforma Agrária do estado e desapropriou porções de terra que foram passadas para famílias camponesas. Não foram, no entanto, apenas latifúndios os terrenos reapropriados. As áreas incluíram territórios indígenas.
O filósofo, teólogo e indigenista Egydio Schwade acompanhou essa situação. “Até hoje os indígenas estão lutando para conquistar essas terras. Depois Brizola mudou a cabeça em relação aos indígenas, mas ficou marcado”, explica.
“Quando os indígenas Kaingang em Nonoai (RS) expulsaram os agricultores de suas terras numa ação muito corajosa, em menos de um mês eram 15 mil camponeses na beira da estrada do município de Ronda Alta (RS)”, narra Schwade.
“E eles se convenceram que os indígenas não eram o problema, mas a falta de reforma agrária. O governo militar queria levar uma parte deles para o Mato Grosso e outra para a Transamazônica. Mas eles quiseram permanecer, começaram a se organizar e, em 1984, criam o MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra]. Que hoje é um dos grandes aliados dos povos indígenas”, conta Egydio.
“Propus, em meu coração, batalhar”
Guarani Ñandeva e nascido na região de Ponta Porã na véspera do natal, Marçal Tupã’i levava um nome cujo significado é “pequeno deus”. Aos seis anos foi picado por uma cobra, na aldeia Teyi’kue em Caarapó (MS), onde vivia, e foi levado para Dourados (MS). Passou quase um ano se tratando na Missão Evangélica Caiuá. Prestes a voltar, recebeu a notícia da morte dos pais e foi morar no orfanato da mesma instituição, onde ficou até os 12 anos.
Vivendo como empregado doméstico de uma família que o “adotou” em Campo Grande (MS) e depois outros dois anos em Recife (PE) com a família de um oficial do Exército, Marçal volta ao Mato Grosso do Sul com 20 anos. A essa altura, já era um missionário evangélico e algum tempo depois, se tornaria enfermeiro. Foi a peregrinação pelas aldeias e o contato com antropólogos que fez com que ele virasse uma chave.
Em um Seminário de Estudos Indigenistas de 1980, o próprio Marçal descreve esse período e diz que ainda “não tinha um ideal, não tinha um alvo, não conhecia a própria história”, até que conheceu o antropólogo, sociólogo e político Darcy Ribeiro. Viajando junto com o pesquisador, Marçal diz que “abriu a mente”.
“Revendo a glória de meu povo já perdida no século, propus, em meu coração, batalhar pelo menos pela restauração da nossa cultura, da nossa crença, da nossa organização social, que só nós entendemos”, expôs Marçal.
Em 1976 conheceu o Cimi que, tendo Schwade como secretário nacional, se dedicava a apoiar a organização de Assembleias Indígenas pelo Brasil. Marçal participou de uma em 1977 nas ruínas de São Miguel das Missões (RS) – mesmo lugar onde, em 1756, tropas portuguesas e espanholas mataram 1,2 mil indígenas Guarani. Entre eles, o líder Sepé Tiaraju.
“Nós já convivemos anos e anos com a civilização do branco e já chegamos à conclusão de que quem tem interesse na vida do índio, na pessoa do índio, é o próprio índio. Chegamos ao fim da picada, ao fim da estrada: ou nós avançamos ou nos entregamos ao branco”, discusou Tupã’i na ocasião, segundo o livro Marçal Guarani (Editora Expressão Popular), de Benedito Prezia.
“Chegou a hora de nós levantarmos a voz pela sobrevivência da nossa gente”, propôs Marçal. “Nossas leis são feitas por pessoal lá de cima, que dizem que nós temos direitos. Nós temos direito no papel, mas onde está a realidade?”, questionou. “Precisamos nos unir braço a braço e levantar alto a voz dos nossos antepassados que foram massacrados. Chegou a um ponto que nós, os índios, devemos tomar a rédea do governo indígena, e esse é o caminho certo: a assembleia, reunir, ouvir todos”, defendeu.
Perseguido por denunciar agentes da Funai, Marçal se muda para Antônio João (MS) em 1980, onde começa a luta pela demarcação da Terra Indígena Pirakuá. Três anos depois, durante um debate com Darcy Ribeiro e Dom Tomás Balduíno no Rio de Janeiro, Marçal anunciou o que lhe aconteceria dali a menos de dois meses: “Eu sou uma pessoa marcada para morrer. Mas por uma causa justa a gente morre”.
O então governador do MS, Wilson Barbosa Martins (MDB), recebeu um telegrama de Darcy Ribeiro dizendo que “o sangue do líder indígena, que foi o mais alto intelectual do Mato Grosso do Sul, emporcalhará sua memória se seus assassinos não forem descobertos e entregues à justiça”. Em 1993 os acusados foram absolvidos e em 2008 o crime prescreveu, sem que ninguém fosse responsabilizado pela morte de Marçal de Souza.
“Lendo Os índios e a civilização de Darcy Ribeiro”, relembra Egydio Schwade sobre as lutas indígenas dos anos 1960 e 1970, “você vê que ele dá um quadro muito tétrico, de fim praticamente dos povos indígenas”.
“E isso tudo mudou graças a essa luta. E por conta dessa luta também caíram muitos indígenas e indigenistas. Mas apesar de toda essa perseguição, hoje são, como constatou o IBGE, 1,7 milhão de indígenas no Brasil” avalia Schwade: “E estão aí, sem dúvida, abrindo caminho para todos nós”.
Edição: Rebeca Cavalcante