Fã de Bob Dylan e de árvores (gostou de encontrar espécies grandes no Brasil), a sueca Pia Mariane Sundhage, à frente da seleção brasileira, está atrás da primeira estrela no escudo da equipe e, de quebra, de garantir a Marta o título mundial que lhe falta, já que essa é a última Copa que a “rainha” disputa.
Alvo de críticas depois de o Brasil perder de 2×1 para a França no último sábado (29) – precisando agora ganhar da Jamaica para se classificar para a próxima fase da Copa do Mundo Feminina -, Pia assumiu a seleção em 2019. O contrato foi firmado depois da eliminação do Brasil no último Mundial, nas quartas de final, justamente pelas francesas.
Desde então, e principalmente depois de uma participação abaixo do esperado nas Olimpíadas de 2021, a sueca deu forma ao seu modelo de jogo e time. Uma de suas escolhas mais polêmicas (e sobre a qual tem evitado comentar) foi a de não convocar para esta Copa a atacante Cristiane, em boa fase no time do Santos. Vivendo uma transição de gerações – que já viu Formiga aposentar -, Pia montou uma equipe com 11 jogadoras novatas e 12 experientes.
Fora de campo, impôs mais profissionalismo. Pela primeira vez, a seleção brasileira chegou à sede da Copa com 20 dias de antecedência para se acostumar com o fuso horário e tem, na sua delegação, profissionais como ginecologista, psicóloga e nutricionista. Instituiu folgas no cronograma de treinos – algo habitual na Europa e raro no Brasil.
Pia se abstém do crédito de boa parte da genialidade das jogadas no ataque da seleção. O terceiro gol do Brasil na partida de estreia contra o Panamá no último 24 de julho é exemplo do que a sueca considera jeitinho brasileiro. “Não fui eu que ensinei”, brincou depois do jogo. “Elas sabem, são brasileiras. Elas têm muitas ideias. No jogo, tiveram situações que eu esperava um chute e elas não chutaram. Elas são imprevisíveis”, disse.
O gol marcado por Bia Zaneratto foi a cereja de um bolo feito em conjunto. Começou com uma enfiada de bola precisa pela lateral esquerda, Debinha então fez uma tabela com Adriana, que devolveu a bola num passe de letra, Ary Borges recebeu o cruzamento e deu um toquinho de calcanhar para trás, para Bia finalizar.
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Foi o ponto alto do jogo que terminou em 4 x 0, mantendo a tradição pé quente de Pia, que nunca perdeu com a seleção em estreias de torneios internacionais. “É um gol típico do Brasil. Tem muita emoção envolvida, uma técnica linda”, definiu a treinadora. Foi esse “jogo brasileiro” que, segundo a técnica, por ela não ter preparado tão bem a conexão em campo entre as jogadoras, faltou contra a França.
Não é a primeira vez que Sundhage destaca ser este um dos elementos que mais lhe impressiona desde que chegou ao Brasil. “Quando vejo uma das jogadoras começar a driblar ou fazer uma jogada – a decisão que tomam me surpreende de um jeito positivo e é tão rápido… você realmente sente o quão rápido é, no campo. Eu amo isso, faz o meu dia”, afirmou em entrevista ao UOL.
O vocabulário de Pia
Pia não tem fluência em português. Num misto de tática para transpor barreiras do idioma e de método próprio de trabalho, ela foca, na sua comunicação com as jogadoras, em determinadas palavras e expressões. Em inglês e português. “Sobe”, “desce”, “compactação”, “juntas”, “desafiar as linhas”, “vigilância”, “popcorn time” e “super subs” são algumas delas.
“Popcorn time”, hora da pipoca, se refere àquele momento em que as jogadoras relaxam em campo, normalmente quando o placar já está favorável. É um alerta para reacender o ânimo. “Super subs” faz menção à importância das substituições sem baixar o desempenho, reforçando o entendimento da equipe como um coletivo que vai além das 11 titulares.
“Tem uma palavra que eu aprendi muito rápido que é ‘paciência’. Isso é importante se você quer ir pelas palavras – porque tem ótimas palavras aqui – e passar de palavras para as ações”, disse ao UOL.
Nas entrevistas, a sueca sempre opta por falar em inglês. Já no cotidiano dos treinos, segundo as jogadoras ela vem se esforçando para se comunicar na língua materna das integrantes da equipe. Antes dos jogos, Pia faz sua exposição para o time em português. Costuma ser um texto que ela prepara com antecedência e lê em voz alta.
Em coletiva de imprensa na Austrália, a lateral esquerda Tamires Britto contou que a treinadora prometeu aprender português depois da derrota nos pênaltis para o Canadá nas Olimpíadas de Tóquio, em 2021.
“Confiamos totalmente na comissão técnica. Cada integrante. Na Olimpíada, lembro bem quando perdemos, foi uma sensação muito ruim. A Pia falou emocionada: ‘Me desculpa, vou aprender português e procurar fazer o melhor’. Ela realmente aprendeu. Ela dá muitas reuniões falando português. Como não confiar em uma comissão experiente, que traz uma técnica fora do normal? Sentimos esse brilho no olhar”, narrou a camisa 6.
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Quem acha, por conta do vídeo que viralizou com Pia cantando Alceu Valença, que este era apenas um meio de aprender a língua, se equivoca. Com uma voz afinada e sabendo tocar violão, a sueca usa a música com certa recorrência para interagir com a equipe que comanda.
Em 2008, a primeira vez que entrou no vestiário da seleção dos Estados Unidos depois de ser nomeada técnica da equipe feminina, já chegou cantando. Na ocasião, quebrou o gelo com The times they are a-changin. E foi também uma canção de Bob Dylan que cantou em um evento da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), ainda antes de assumir o cargo atual.
Quanto a Alceu, Pia conta que ela e a também sueca assistente técnica ficaram boiando um dia, em uma reunião, quando todo mundo começou a cantar Anunciação. Só elas não conheciam. Percebendo a aderência à música, Pia fez uma paródia, trocando “tu vens” por “set pieces”, termo que significa jogada ensaiada de bolas paradas.
Pia ou Pelle, de um vilarejo sueco ao Brasil
Segunda mulher à frente da seleção brasileira feminina de futebol (Emily Lima foi a técnica entre 2016 e 2017), Sundhage é a primeira estrangeira trazida pela CBF. Também a primeira abertamente lésbica a ocupar o posto.
Pia nasceu em 13 de fevereiro de 1960 no vilarejo de Marbäck, na cidade sueca de Ulricehamn, que atualmente tem 11 mil habitantes. Sua mãe era garçonete e seu pai, motorista de ônibus.
“Onde eu nasci, simplesmente comecei a chutar a bola com os pés ao invés de passar a bola com a mão. As meninas deveriam passar a bola com a mão. Enquanto os meninos iam competir. Não sei por quê. Meus vizinhos começaram a jogar futebol e depois de um tempo, eu estava completamente envolvida nisso”, relatou na já citada entrevista ao UOL.
Quando criança, ela fazia parte de um time que, além dela, só tinha garotos. A pequena, no entanto, era barrada das competições. A solução pensada junto com seu técnico foi inscrevê-la como menino. Por dois anos, Pia foi chamada de Pelle Sundhage. Até ser descoberta. “Acho que foi o período mais divertido da minha vida”, riu ela: “É assim que você acha seu caminho. Sempre há um caminho”.
Mais tarde, o nome (ou um pedaço dele) apareceria em outro membro da família. Ela batizou seu cachorro de Pelé-Cruyff-Beckenbauer.
Aos 15 anos, foi convocada para a seleção sueca pela primeira vez. Com essa camisa foi campeã e artilheira da Copa Europeia em 1984, disputou os Mundiais de 1991, 1995 e a Olimpíada de 1996. Esta, aliás, foi a primeira vez que houve futebol feminino em jogos olímpicos.
Sundhage jogou em clubes da Suécia durante quase toda sua carreira – com exceção de quando defendeu a Lazio em 1985 – e pendurou as chuteiras em 1996, sendo na época a maior goleadora da seleção da Suécia, com 71 gols.
Acostumada a dar palpites na beirada do gramado, Pia já tinha funções junto da equipe técnica e acumulava caderninhos mesmo quando atuava ainda como jogadora no Hammarby, entre 1992 e 1994. A esta altura, já tinha terminado a faculdade na Escola Sueca de Esporte e Ciências da Saúde.
“Não visitaria o rei”
Em 2003, Pia Sundhage foi contratada para treinar o Boston Breakers nos EUA, seu primeiro trabalho solo. Mas sua carreira como treinadora deslanchou a partir de 2008, quando assumiu a seleção estadunidense. Ali, acumulou medalhas.
Foi bicampeã do Torneio das Quatro Nações, bicampeã olímpica e vice na Copa do Mundo de 2011. No ano seguinte, ganhou a Bola de Ouro da Fifa como melhor técnica de futebol feminino do mundo.
Recusou dois convites presidenciais – de George W. Bush e Barack Obama – para visitar a Casa Branca. “Eu sou feliz mesmo é no campo, com um par de chuteiras. Aparecer e conhecer gente importante particularmente não me fascina”, explicou ao jornal sueco Norrköppings Tidningar.
Para a revista Proletären (O Proletário, em português), também comentou a decisão, na época. “Se eu tiver uma chance de ir à esquerda ou à direita, eu escolherei a esquerda. Quero ser lembrada pelo trabalho com a seleção de futebol feminino dos EUA, não com a Casa Branca. Eu provavelmente não visitaria o rei da Suécia também”.
Em 2012 deixou os EUA para assumir a seleção do seu próprio país, com quem foi prata nos Jogos Olímpicos de 2016, que aconteceram no Rio de Janeiro. A zagueira sueca desta equipe, Nilla Fischer, publicou em junho uma autobiografia sob o título Jag sa inte ens hälften (Eu não disse nem a metade, em tradução livre), em que critica a atuação da treinadora.
Na versão da ex-jogadora, as diretrizes táticas de Sundhage eram insuficientes. Fischer também relata um episódio em que não conseguia dormir, na véspera de um jogo, enquanto num quarto próximo acontecia uma festinha com a presença da técnica, a despeito de estarem em período de concentração.
“Esta é a verdade de Nilla. Eu tenho uma experiência diferente, uma história diferente. Triste que durante seu tempo na seleção ela tenha vivenciado isso dessa maneira”, respondeu Pia ao site SVT Sport.
Desde 2019 no Brasil, o contrato de Pia com a CBF vai até as Olimpíadas de 2024. No ano passado, quando venceu a Copa América numa campanha invicta com a seleção brasileira, a sueca se tornou a primeira mulher técnica a conquistar esse título no futebol feminino.
“É divertido – e se é divertido, você continua”
“Ainda há muita dificuldade, sem dúvida. Você precisa lutar pelas coisas”, reflete Pia, ao ser questionada sobre as desigualdades de gênero no esporte. “Mas, em primeiro lugar, considero divertido. Olho para trás e tiveram tantos bons momentos da minha vida no campo”, sorri. “É divertido. E se é divertido, você continua, ainda que você tenha que viajar para longe, por exemplo. Então isso é algo que dá energia”.
“Quando me deparo com dificuldades, olho para trás e para frente”, explica a técnica. “Algumas vezes é difícil. Tenho que admitir. Algumas vezes é ofensivo. Mas se você respira um pouco, olha para a palavra ‘paciência’, ok”, suspira.
“Eu sei que quem vier depois de mim vai ter melhores oportunidades”, avalia. “Quem quer que assuma essa cadeira depois de mim não vai precisar passar pelos mesmos obstáculos que eu tive nesses três anos e meio”, diz a treinadora do Brasil. “Então é um lugar que você pode fazer a diferença e isso me motiva”, resume.
“Não podemos decidir o resultado”, diz Pia, se referindo à Copa, mas numa frase possivelmente metafórica para a vida, “mas podemos decidir a jornada”.
Edição: Leandro Melito