Depois de a Câmara dos Deputados aprovar, na noite de terça (5), o texto que estipula regras para o manuseio de emendas parlamentares, organizações civis apontam que o Poder Legislativo está discutindo o tema de maneira inapropriada. A proposta, oficializada como Projeto de Lei Complementar (PLP) 175/2024, recebeu o aval da Casa após ter tido a tramitação de urgência aprovada momentos antes pelo plenário. O rito encurta o percurso legislativo da matéria, evitando que o texto seja discutido pelas comissões parlamentares e levando a proposta direto para análise do plenário, o que impossibilita uma participação mais efetiva e direta de atores civis e especialistas no tema. A proposta agora está a cargo do Senado, onde tende a ser votada dentro de alguns dias.
Segundo informação dada à imprensa pelo líder do governo no Congresso Nacional, senador Randolfe Rodrigues (PT-AP), o PLP tende a ser votado no plenário antes do feriado de 15 de novembro, provavelmente na próxima terça (12). A sinalização do parlamentar veio à tona após uma reunião de articulação com o presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). A previsão indica que, mais uma vez, assim como ocorreu na Câmara, o texto será debatido e votado sem diálogo com a sociedade civil e com especialistas que acompanham o tema do orçamento público, já que não há tempo hábil para que o Senado promova audiências públicas e outras tratativas sobre o tema até a data.
A formulação do projeto, assinado pelo deputado Rubens Pereira Júnior (PT-MA), veio após acordo entre governo federal e Congresso e surge depois da determinação do Supremo Tribunal Federal (STF) de que o trâmite de uso das emendas precisa ter transparência e rastreabilidade. A Corte condicionou a liberação das emendas impositivas – suspensas pelo ministro Flávio Dino em agosto – à aprovação de uma lei que crie regras para a dinâmica de uso do dinheiro. Com isso, os parlamentares tentam correr contra o tempo para aprovar o PLP e liberar as emendas. O conteúdo do texto tem sofrido um conjunto de críticas de entidades civis.
“A grande maioria do Congresso está bem alinhada na aprovação de uma proposta que destrave as emendas, então, são poucos os parlamentares que estão atuando para de alguma forma cobrar maior transparência ou exigir modificações nesse projeto. A gente gostaria muito que fosse realizada uma audiência pública para discutir o tema, por exemplo, mas ainda não foi aberto esse espaço para a sociedade”, lamenta o gerente de Pesquisas e Advocacy da Transparência Internacional – Brasil, Guilherme France.
Os especialistas ouvidos pela reportagem ressaltam que o rito enxuto de tramitação agrava o cenário de histórico distanciamento da população em relação aos debates sobre o orçamento público. O tema envolve conteúdos com certa complexidade e que, sem uma abertura de diálogo com a sociedade, acabam ficando, na maior parte das vezes, restritos a um olhar técnico e concentrados em redutos da política institucional e da intelectualidade, nos quais a tradução da pauta para o grande público passa longe do foco.
“A forma como foi feita a votação na Câmara foi irregular no sentido dos ritos legislativos, foi inadequada, e prejudicou não só a participação da sociedade civil formal – a nossa, das organizações e redes –, mas também impediu que a população se apropriasse do debate, tivesse mais clareza do que estava sendo debatido, entendesse o que implicaria esse PLP quando aprovado, quais as melhorias que podem ser feitas [no texto] e quais os pontos eventualmente frágeis dele”, avalia a diretora de programas da Transparência Brasil, Marina Atoji.
Questionado se vê chance de os senadores modificarem o projeto no sentido de conferirem ao texto mecanismos que garantam maior transparência ao uso do dinheiro público, Guilherme France acredita que eventuais avanços estão atrelados ao nível de pressão popular que o PLP venha a sofrer. “Depende em grande medida da sociedade na apresentação dessas demandas e dos principais problemas do texto. A imprensa também tem um papel muito importante ao lançar luz sobre esses problemas”, afirma o especialista, que pesquisa o tema do combate à corrupção. Ele chama a atenção para o peso político e orçamentário do PLP 175.
“A sociedade precisa perceber – e a gente sabe que o tema é técnico e bastante imbricado – que estamos falando de um projeto que regulamenta a destinação de um quarto do orçamento da União. Mais de R$ 50 bilhões do orçamento federal vão ser distribuídos no país de acordo com as diretrizes desse PLP. É um projeto que tem centralidade no funcionamento do sistema político. A gente já percebeu os impactos que as emendas têm nas eleições, na formação de algum tipo de governabilidade e também na própria provisão de serviços à sociedade na forma de educação, saúde, transporte, etc., que estão sendo, em larga medida, financiados com esses recursos, especialmente em pequenos e médios municípios. Então, é um tema urgente e a relevância e o impacto que ele tem contradizem com a forma atropelada como ele está sendo analisado pelos parlamentares”, avalia.
Limitações
Em análise divulgada esta semana, a Transparência Brasil, a Transparência Internacional – Brasil e a Associação Contas Abertas apontaram que o texto do PLP 175 contém “falhas e omissões graves” e não atende às determinações do STF. A proposta traz regras para o manuseio de emendas de bancada, individuais e de comissão, entre outros aspectos relativos ao fluxo do dinheiro envolvido. O texto prevê, por exemplo, publicação de portarias com previsão de critérios que tratem de projetos a serem beneficiados com verbas de emendas de bancada, designação do objeto a ser alvo de emendas de comissão, entre outras medidas.
A avaliação técnica das entidades é de que o texto ainda dá muito espaço de autonomia para os parlamentares administrarem o encaminhamento dos recursos sem estarem submetidos a mecanismos rígidos que garantam a capacidade de o Estado fiscalizar a aplicação do dinheiro. Na prática, os especialistas afirmam que o PLP não reduz as chances de corrupção no uso das emendas e ajuda a perpetuar a lógica implementada pelo orçamento secreto.
“Majoritariamente, o texto do PLP ajuda a perpetuar. Para não ser injusta, posso citar, por exemplo, o fato de o PLP determinar que o TCU é também responsável por fiscalizar a aplicação de emendas pix, que é algo que não tínhamos antes da decisão do Flávio Dino. Então, o PLP tem isso de positivo, além de uma parte que proíbe expressamente a individualização de emendas de bancadas. São os dois pontos que podemos pescar como coisas que vão ao encontro do que a gente defende, mas, por exemplo, o texto não coloca um mecanismo maior de transparência sobre os parlamentares que vão indicar as emendas de comissão, além de ter outros problemas”, resume Marina Atoji.
As críticas dos especialistas dialogam também com o que tem apontado a bancada do Psol, autor da ação judicial que, em 2022, levou o STF a julgar o orçamento secreto como inconstitucional. Um dos parlamentares que manifestaram críticas ao texto do PLP durante a votação na Câmara, Tarcísio Motta (Psol-RJ) afirma que a proposta mantém a captura de parte importante do orçamento público por parte do Congresso Nacional e, com isso, conserva os riscos de uso indevido do dinheiro.
“Sem transparência, sem controle social, nós continuamos à mercê de escândalos de corrupção, de desvio de dinheiro para fins pessoais e privados dos próprios parlamentares que indicam os projetos [a serem beneficiados com verbas]. E esse é o maior problema. O PLP é insuficiente. Ele avança em alguns pontos, mas é absolutamente insuficiente e não resolve os problemas”, aponta Motta. Para o parlamentar, uma inversão de rumos na forma como o Legislativo vem tratando o tema só seria possível com maior pressão.
“De um lado, precisamos reforçar a mobilização social. Sem mobilização nas ruas, sem a sociedade civil organizada, sem entidades que cobrem transparência e controle social, acho que o Congresso não vai se mexer no sentido de dar maior transparência a isso. E é preciso também que o governo dê demonstrações de que deseja isso e tenha ações mais decididas. O Congresso, sozinho e com essa maioria fisiológica que se acostumou à lógica do toma lá da cá, dificilmente vai avançar rumo a um maior controle social. É um debate que interessa à democracia e acho que o governo vai precisar fazer esse debate junto com a sociedade para, de certa forma, pressionar o Congresso a caminhar na direção de mais democracia e transparência.”
Edição: Thalita Pires