Apenas 0,9% do montante de R$ 8,2 bilhões previstos nas chamadas “emendas Pix” para o Congresso Nacional em 2024 tem indicação de destino, ou seja, de quem será beneficiado com o dinheiro e de qual ação receberá esse investimento público. O dado é apontado em nota técnica publicada na segunda-feira (29) pela organização Transparência Brasil, segundo a qual essa transação repagina o orçamento secreto, prática que foi considerada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em dezembro de 2022.
O tema volta à tona esta semana em meio a uma ação movida na Corte por parte da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), que afirma que as emendas Pix impedem a fiscalização do fluxo dos recursos públicos, e também nas vésperas de o assunto retornar à pauta do Supremo, onde uma audiência de conciliação conduzida pelo ministro Flávio Dino discutirá o tema nesta quinta-feira (1º). Esse tipo de transação recebe esse nome por se tratar de uma transferência especial e direta de recursos públicos para prefeituras e municípios com ampla praticidade e sem que seja cobrada uma rígida prestação de contas.
Contexto
Na época em que o tema foi alvo de julgamento por parte do STF, os ministros se debruçaram sobre a chamada “RP-9” ou “emendas de relator”, rubrica técnica que formalizava o orçamento secreto e que foi instaurada pela Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2020, durante a gestão de Jair Bolsonaro. Por maioria de votos, a Corte entendeu que a prática fere os princípios constitucionais da transparência, da impessoalidade, da moralidade e da publicidade porque o manuseio do dinheiro público se dá sob anonimato, sem especificação de qual ator político propôs cada emenda e de qual seria a ação destinatária dos recursos.
No curso da ação judicial que tramita no STF, o ministro Flávio Dino afirmou, em junho, que o governo federal e o Congresso não haviam conseguido comprovar o cumprimento da decisão da Corte. Foi a partir disso que foi agendada a conciliação da próxima quinta-feira. A iniciativa veio após as organizações Associação Contas Abertas, Transparência Internacional Brasil e Transparência Brasil oficiarem o magistrado para apontar que vigora atualmente uma espécie de remodelação do orçamento secreto no Legislativo por meio das emendas Pix.
A LDO 2024 e a Instrução Normativa (IN) nº 93, aprovada pelo Tribunal de Contas da União (TCU) em janeiro deste ano, traçaram mecanismos de fiscalização para essas transferências, mas a análise da Transparência Brasil aponta que tais medidas não solucionaram o problema. Apesar disso e da decisão tomada pelo STF em 2022, a avaliação da ONG é que o orçamento secreto tem tido sequência não só através das emendas Pix, mas também por meio de outras transações que passaram a ser adotadas como alternativa para a movimentação de dinheiro público sem o atendimento a critérios de transparência.
Flávio Dino herdou relatoria de ações que questionam orçamento secreto a partir de aposentadoria da ministra Rosa Weber / Gustavo Moreno/SCO/STF
Emendas de comissão
Os especialistas citam como exemplo uma consequência trazida pela Emenda Constitucional (EC) 126/2022, que permitiu ao relator-geral do orçamento de 2023 a realocação de verbas para as comissões permanentes do Congresso e de cada uma das suas casas legislativas no ano passado. O resultado disso foi um salto dos valores destinados às emendas de comissão, que saíram de R$ 329 milhões em 2022 para R$ 6,9 bilhões em 2023.
“Foi incluído na LDO um dispositivo que diz que o destino final e a ação orçamentária para a qual vai uma emenda de comissão serão dados depois, na hora da execução, e não durante a apresentação de emendas, mas já na fase de envio de ofícios dos presidentes das comissões para os ministérios que são responsáveis pela sua execução”, diz Marina Atoji, diretora de programas na Transparência Brasil.
“É um mecanismo muito parecido com o que se tinha com a RP-9. Há até algum grau de transparência disso, mas, ao mesmo tempo, ninguém consegue saber como se deu a negociação dentro da comissão ou dentro do próprio Congresso para motivar esses ofícios que são enviados aos ministérios.”
Diante disso, a Transparência Brasil acende outro alerta: a falta de uma clara publicidade nas decisões que circundam essas emendas agrava as desigualdades regionais, o que vai no contrafluxo dos mandamentos constitucionais. A Carta Magna de 1988 estabelece que o país deve cultivar, entre seus objetivos fundamentais, a redução das assimetrias sociais e regionais.
Atoji explica que o atendimento a essa lógica atualmente adotada pelo Congresso se dá por conta do direcionamento de recursos públicos a partir de interesses paroquiais de agentes políticos, ou seja, por motivação de ordem pessoal e/ou eleitoral. Essa dinâmica acaba desprivilegiando as necessidades locais verificadas no país.
“Muitas vezes você tem um político, um congressista ou um ministro que tem um pouco mais de acesso a essa forma de destinação de recursos e, por isso, ele consegue destinar mais verbas para sua área, que não necessariamente pode ser aquela que está mais defasada em termos de serviços públicos. E, ao mesmo tempo, uma área que esteja defasada em termos de verbas federais, mas que não tenha uma representação forte no Congresso ou cujo representante não esteja interessado na solução desse problema pode ficar sem esse repasse, ou com menos repasse de verbas”, diz a especialista.
“É por isso que as emendas precisam estar ligadas ao Plano Plurianual [PPA] e levar em conta os indicadores [do país], como os índices de desenvolvimento humano ou as próprias necessidades [da população] em termos de infraestrutura, saúde, educação e das demais coisas que contam com políticas federais de descentralização dos gastos”, afirma.
A nota técnica da ONG aponta que, para os anos de 2023 e 2024, a maior parte das emendas de comissão aprovadas foi canalizada para “ações orçamentárias genéricas”, motivo pelo qual não é possível assegurar um alinhamento entre o uso dessas verbas e o PPA.
A análise técnica da Transparência Brasil lembra ainda que tais emendas também usurpam os poderes do Executivo federal por parte do Legislativo, que capitaneia a destinação dos recursos. A prática reproduz a dinâmica antes adotada por meio da RP-9, que, ao ser avaliada pelo STF, recebeu o mesmo apontamento por parte do ministro Ricardo Lewandowski, por exemplo. Ele disse, na ocasião, que as emendas de relator modificam a lógica de divisão de recursos públicos por retirarem do chefe do Executivo o poder de decisão sobre onde será alocado o dinheiro, o que afeta a governabilidade e os mecanismos que sustentam a lógica da separação entre os Poderes.
Contracorrente
A perspectiva de facilitação do acesso a dados de interesse público vem sendo alimentada no mundo democrático desde o século XX, ao longo do qual práticas do tipo foram difundidas paulatinamente em diversos países. A isso se seguiu a busca por referências que padronizassem essa cultura política no mundo.
Em 2010, por exemplo, a Organização dos Estados Americanos (OEA) criou uma lei-modelo de acesso à informação para orientar essa conduta na América Latina. No ano seguinte e adotando as mesmas diretrizes, o Brasil aprovou a Lei nº 12.527/2011 ou Lei de Acesso à Informação (LAI), que regulamenta o direito constitucional de acesso a informações públicas no território nacional. Foi nesse mesmo contexto que o país passou a expandir em diferentes frentes a busca por uma consolidação dessa cultura.
Nesse sentido, a Transparência Brasil assinala que a prática do orçamento secreto, hoje remodelada por meio das emendas Pix e de outras transações com pouca publicidade, representa uma medida de contrafluxo, já que retrocede em relação às conquistas que vinham sendo buscadas nos últimos tempos.
“As emendas parlamentares nunca foram um baita exemplo de transparência, mas isso começou a piorar nos últimos anos, o que fez com que o processo ficasse mais opaco e passasse, com isso, a impor mais dificuldade para a sociedade acompanhar. É um claro movimento de retrocesso no Congresso Nacional”, afirma Marina Atoji, ao acrescentar que a política também contraria tratados internacionais.
Supremo
Na próxima quinta-feira (29), a audiência no Supremo deverá reunir representantes do governo, do Legislativo, do Tribunal de Contas da União (TCU) e ainda integrantes do Psol, legenda que provocou inicialmente a Corte nos últimos anos a respeito da inconstitucionalidade do orçamento secreto. A Transparência Brasil diz esperar que a agenda seja “um passo adiante” na busca por mais publicidade no fluxo das verbas públicas.
“A gente espera que, no mínimo, se cobre do Congresso e do Executivo o cumprimento das determinações da própria Corte no sentido de se dar transparência às emendas de relator do período até 2022 e que se dê transparência ou que se cumpra a transparência sobre as emendas de relator que foram admitidas em 2023 porque a gente não tem clareza sobre como isso foi executado ou não”, diz Atoji.
A especialista destaca ainda o papel que têm nesse processo os demais atores que exercem vigilância sobre a execução do orçamento público. “Espero que essa audiência seja um primeiro passo, mas a gente depende também de movimentos do Ministério Público e dos Tribunais de Contas para abordar as outras modalidades de emenda, como as emendas Pix, para que elas também sejam vistas com o mesmo critério e a mesma profundidade que as emendas de relator foram para que se melhorem essas formas de destinação de recursos federais e que não se tenha um panorama tão grande de direcionamento desorganizado de recursos federais.”
Edição: Martina Medina