O lítio tem sido considerado como o pote de ouro da economia no próximo período. O material é fundamental para a fabricação de baterias, carros elétricos, entre outros produtos tecnológicos; é estratégico para o setor energético, sendo insumo de reatores nucleares; e peça-chave para o armazenamento de energia elétrica produzida por fontes renováveis, como a eólica e a fotovoltaica.
Apesar de ter vendido as ações de Minas Gerais na Companhia Brasileira de Lítio, Romeu Zema (Novo) tem realizado investimentos robustos com recurso público para aparelhar a exploração do lítio por empresas privadas no Vale do Jequitinhonha.
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Levantamentos realizados pela Invest Minas, agência de promoção de investimento e comércio exterior de Minas Gerais, ligada ao governo de Minas Gerais, apontam que o território possui 45 depósitos do mineral, se configurando como a maior reserva do país. Ainda de acordo com o governo, o material encontrado no território é de alta pureza, o que aumenta seu valor de mercado.
Somente nos quatro primeiros meses de 2023, foram abertos 188 processos de mineração relacionados ao lítio, montante igual ao total de processos registrados entre 1973 e 2021. Os dados são do Observatório dos Vales do Semiárido Mineiro da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), que tem acompanhado e pesquisado sobre os projetos de exploração do minério no território.
Para falar sobre o tema, entrevistamos Aline Weber Sulzbacher, geógrafa e integrante do grupo.
Confira na íntegra:
Brasil de Fato MG – Qual a situação de Minas Gerais, especialmente do Vale do Jequitinhonha, em relação à corrida mundial pelo lítio?
Aline Weber Sulzbacher – O fato de Minas Gerais conter uma boa parte da reserva mundial do lítio nos coloca em um cenário de disputa internacional. Com isso, a gente passa a ter um território estratégico internacionalmente, atraindo empreendimentos que respondem a uma perspectiva desenvolvimentista, mas que internalizam os lucros e externalizam os impactos sociais e ambientais. Ou seja, que não têm nenhuma intenção de partilhar minimamente o benefício.
Isso é muito grave, porque a gente tem uma grande dificuldade de converter esses empreendimentos em benefícios locais para a população ou mesmo de realizar projetos que atendam às demandas da população. Além disso, outro fator importante é o debate sobre os territórios livres de mineração, seja por sua agrobiodiversidade, ou pelo valor cultural que os povos e comunidades têm com esse ambiente.
No semiárido mineiro, tem várias comunidades que estão em processo de reconhecimento como povos tradicionais, que possuem tecnologias sociais que permitem a convivência com semiárido. Ou seja, é a lógica da convivência com semiárido a partir de vários saberes e fazeres que têm relação com a dinâmica que os territórios apresentam.
Romeu Zema tem aportado robustos recursos para garantir infraestrutura completa – entre outras benesses – à exploração privada do mineral no território. Para justificar o investimento público em um projeto que beneficiará empresas privadas, o governador tem utilizado o “desenvolvimento” da região, como a geração de emprego e renda, como carro-chefe. Qual sua avaliação sobre isso?
É importante lembrar que não é a primeira vez que o Estado, seja na esfera federal ou estadual, traz o discurso que a região precisa ser alvo de grandes projetos de desenvolvimento para garantir a superação de uma condição de “miséria e de pobreza”. Ao longo do século 20, tiveram vários momentos em que esse discurso foi retomado, repaginado, atualizado para justificar a privatização dos bens comuns. Cabe ressaltar que o Vale não é da miséria, mas tem uma série de riquezas comprovadas historicamente, desde o período colonial até os dias atuais, não só econômicas, mas também culturais e de agrobiodiversidade.
A disputa colocada hoje é sobre qual é o papel que o Estado deve exercer na mediação desses interesses. O que temos observado é que as instituições públicas, em seus diferentes níveis, não têm tido condições de cumprir o seu papel de mediação e de garantir e resguardar os interesses daquele que é o elo mais fraco desse processo, ou seja as populações, os povos e as comunidades tradicionais.
O projeto da Sigma Lithium em Araçuaí, por exemplo, como indica no Relatório de Impacto Ambiental (Rima), pode gerar cerca de 450 postos de trabalho durante sua instalação, podendo reduzir a um terço durante a operação, ou seja, algo em torno de 150 vagas. São postos de trabalho que não necessariamente serão ocupados por pessoas locais. Pouco se fala no quanto a instalação desse tipo de empreendimento já impacta a qualidade de vida, como o aumento do custo de vida, dos bens e serviços, o que impõe às famílias a necessidade de mudar de local de residência, empurrando-as para a borda da área urbana, que geralmente têm menos acesso à saúde, ao saneamento básico, à educação etc.
É importante dizer também que a gente tem uma experiência de produção mineral ligada ao lítio, aqui no Vale do Jequitinhonha, que é estatal. E uma experiência estatal se difere muito da exploração privada, porque todo o lucro produzido na estatal é de propriedade do Estado e, portanto, pode ser revertido em investimentos de interesse social ou de aprimoramento tecnológico. Tem uma finalidade que atende à soberania em alguma medida.
Em julho do ano passado, Jair Bolsonaro publicou o Decreto 11.120 que anula completamente o papel do Estado na liberação e fiscalização dos projetos de exploração e comercialização de lítio no país. Isso impactou na situação enfrentada hoje por Minas Gerais?
Isso impacta significativamente a região. Dos processos minerais disponibilizados pela Agência Nacional de Mineração (ANM), entre o ano de 1973 a 2021, tivemos 188 processos minerários ligados ao lítio no Vale do Jequitinhonha. Já de 2021 a 2023 foram 370 processos, sendo 188 abertos entre janeiro e abril deste ano.
Isso significa que em quatro meses tivemos quase o total de projeto registrado em 48 anos. Os processos de 2022 e 2023 correspondem a quase 500 mil hectares de terra que estão eminentemente em contexto de conflito territorial.
Quando uma empresa entra com processo de registro na ANN, e ele avança para uma condição de autorização de pesquisa, significa que a empresa pode entrar na área, que é o seu polígono demarcado, para fazer coleta. Nós estamos falando de 500 mil hectares de terra em que vivem comunidades rurais, urbanas e povos tradicionais, agricultores e ribeirinhos etc., uma variedade de sujeitos sociais do campo que já vivenciam contextos de confronto.
A legislação brasileira indica uma diferença entre a propriedade de solo, da terra e do subsolo, sendo este de domínio exclusivo da União. Portanto, na fase de autorização da pesquisa, o requerente do processo minerário pode realizar incursões na área demarcada pelas coordenadas geográficas do processo sem necessariamente ter uma consulta prévia. Então é um contexto de uma violência simbólica e de uma insegurança jurídica muito grave. E isso afeta a perspectiva de permanência na região, causando medo às pessoas e fragilizando os indivíduos e a comunidade.
O semiárido mineiro é um território que já enfrenta situações de escassez hídrica. Na sua opinião como fica a situação do rio Jequitinhonha e do povo do território com a instalação do projeto “Vale do lítio”?
A bacia do Jequitinhonha, historicamente, foi objeto de grandes empreendimentos, seja de produção agrícola, como a silvicultura, que comprovadamente interferiu na dinâmica hídrica do rio, secando várias nascentes e causando impactos na sua vazão, seja de produção energética, como as usinas, que podemos citar o caso de Irapé, que atende a um operador nacional, ou seja, não atende à demanda regional. Há estudos do Observatório que demonstram que comunidades afetadas pela hidrelétrica não possuem acesso à energia ou têm acesso precário.
E agora, mais uma vez, um projeto que se propõe a utilizar a água do Jequitinhonha. No caso em voga, o empreendimento da Sigma Lithium que, de acordo com o Rima, tem a estimativa de uso de 150 metros cúbicos de água por hora. Com base nos valores do consumo de água da população do município de Araçuaí, a operação do empreendimento implica em um aumento de 74% da demanda por água. Isso no território em que no período da seca (de abril a setembro) já há comunidades abastecidas por caminhões-pipa. Reforçando que nós estamos falando de comunidades, populações e cidades que têm uma dinâmica, um modo de vida, ligada ao rio, que é fundamental para a agrobiodiversidade. Então, essa questão da água, por exemplo, já é um conflito.
Fonte: BdF Minas Gerais