Cercados por ruralistas e caminhonetes desde que, em 5 de julho, retomaram parte de seu território ancestral sobreposto por fazendas no oeste do Paraná, indígenas Ava Guarani afirmam que vão “resistir até a última gota de sangue” aos despejos determinados pela Justiça.
Neste mês de julho, os indígenas fizeram sete retomadas dentro da área já delimitada, porém com processo demarcatório estagnado, da Terra Indígena (TI) Tekoha Guasu Guavirá. Acatando o pedido de fazendeiros, o juiz João Paulo Nery dos Passos Martins, da 2ª Vara Federal de Umuarama, emitiu seis ordens de reintegração de posse. O primeiro prazo dado para a saída voluntária, antes da remoção forçada, vence na segunda-feira (29).
“Essa reintegração de posse é a reintegração da morte. Porque nenhum Guarani vai recuar. Vamos permanecer aqui, aconteça o que acontecer”, afirma Noêmia*, liderança Ava Guarani. “Com essa reintegração de posse o Brasil terá que assistir a um verdadeiro massacre”, alerta.
A decisão judicial foi dada pelo mesmo juiz que, entre outros interditos, proibiu a Funai de prestar assistência, com a entrega de suprimentos, alimentos e água, aos Ava Guarani que estão nas áreas ocupadas.
As reintegrações de posse expedidas pelo juiz Nery dos Passos Martins acatam os pedidos feitos por Idelma Cezaria Triches, Jean Paulo Rodolfo Ferreira e familiares, Josefina Edil Samara, Harrison Edival Samara, Luciane Possan Weber, Arthur Weber Rubert e familiares.
A Terra Indígena Guasu Guavirá
Localizada nos municípios de Terra Roxa (PR), Guaíra (PR) e Altônia (PR), a TI Tekoha Guasu Guavirá teve seus 24 mil hectares identificados e delimitados pela Funai em 2018. A área está sobreposta por cerca de 165 fazendas. A continuidade do processo demarcatório, no entanto, está suspensa por um pedido das prefeituras de Guaíra e Terra Roxa acatado pela Justiça Federal em primeira instância.
Em 2020, sob o governo Bolsonaro (PL), a Funai era presidida pelo delegado Marcelo Xavier, alvo de greves de servidores e de indiciamento por omissão no caso dos assassinatos de Bruno Pereira e Dom Phillips. Sob sua gestão, a autarquia anulou os estudos da TI Guasu Guavirá.
Em 2022, um relatório do Ministério Público Federal (MPF) recomendou à Funai de Xavier a retomada dos estudos do território dos Ava Guarani, sob possível penalização. Nada feito. “Ele continuou seu mandato e até hoje não foi penalizado por cometer essa improbidade administrativa”, observa Osmarina Oliveira, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) do Paraná.
Com Joenia Wapichana à frente da Funai desde o início do governo Lula (PT) em 2023, os estudos de delimitação da TI Guasu Guavirá estão, novamente, validados. A continuidade da regularização do território, no entanto, segue impedida até que venha, em instâncias superiores, a decisão final do processo judicial.
“O judiciário, portanto, tem muita responsabilidade neste processo de violência que os Guarani estão vivenciando”, conclui a missionária do Cimi.
“Cansados das promessas vazias do homem branco”
“Esperamos demais pela Justiça brasileira, pelo Estado que deveria fazer valer os direitos que estão na Constituição Federal”, alega Noêmia. “Retomamos um território que nos pertence. Estas ampliações estão dentro da delimitação”, salienta.
“Fomos chamados de invasores. Não somos invasores, estamos fazendo a autodemarcação”, explica a liderança indígena. “Porque estamos cansados das promessas vazias do homem branco. Das pessoas que têm poder. E hoje vemos que esses que teriam o poder de fazer algo pelos Ava Guarani estão fazendo tudo ao contrário”, afirma Noêmia.
Na sua avaliação, a recente escalada da violência contra os povos indígenas – que também atinge neste momento os Guarani Kaiowá no MS, os Anacé no Ceará, os Parakanã no Pará, bem como os Kaingang e Guarani Mbya no RS – se relaciona com a lei do marco temporal.
Aprovada pelo Congresso no fim do ano passado, a Lei 14.701/23 impõe, entre outros ataques aos direitos indígenas, a tese de que só podem ser demarcadas terras ocupadas por povos originários até 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição.
“Essas leis em vigor aumentam o ódio dos fazendeiros. Aqui, não só deles, mas também dos políticos dos municípios de Guaíra e Terra Roxa”, avalia Noêmia.
Osmarina Oliveira destaca que o Cimi “vê com muita preocupação” o cenário no oeste paranaense. “A Força Nacional está na região, mas o número é muito pequeno. Fizemos ofícios para os ministérios dos Povos Indígenas e da Justiça pedindo mais efetivo porque neste momento os Guarani ainda estão muito desprotegidos”, observa.
Questionado pelo Brasil de Fato sobre o acirramento da tensão a despeito da presença da Força Nacional, o Ministério da Justiça, sob o qual o aparato está submetido, informou que os agentes seguem “intermediando os conflitos e realizando suas ações de acordo com o planejamento dos órgãos apoiados”. Em nota, a pasta afirmou que “o efetivo mobilizado trabalha com foco na garantia da segurança dos indígenas”.
Atropelamentos, fogo e ameaças
No último 7 de julho pela noite, dois dias depois do início da onda de ocupações feita pelos Ava Guarani, um grupo de fazendeiros atacou a retomada tekoha (“lugar onde se é”, em guarani) Arapoty. Localizada em Terra Roxa (PR), a área está sobreposta pela Fazenda Brilhante, da família Rodolfo Ferreira.
“Os indígenas que estavam ali foram atacados, tiveram as lonas e os mantimentos queimados. O que não foi queimado foi levado pelos fazendeiros. Tocaram o terror. Quando a Força Nacional chegou, já tinham saído”, relata Wellington*, também liderança Ava Guarani.
Em 15 de julho, na retomada tekoha Tatury em Guaíra (PR), o ataque deixou feridos. “Neste local são ao menos 30 famílias que estão em um espaço muito pequeno, de menos de um hectare. Vivem em uma região de pedreira: não dá para fazer casa, não dá para plantar, o que planta não produz. Então tem essa necessidade de ampliação do terriório”, explica Wellington.
“E na segunda-feira (15), às 7h os fazendeiros já chegaram lá atacando com tiros de armas de fogo, foguetes. E entraram na área de ampliação com caminhonetes. Correram atrás dos indígenas até alcançar e atropelar com a caminhonete”, relata Wellington. Três indígenas foram atropelados. Uma jovem quebrou o braço, uma mulher machucou o pé e um homem teve ferimentos leves.
“Se reuniram muitos fazendeiros, muito agressivos: ameaçando, xingando, queimaram um barraco, levaram os pertences”, narra Wellington. “E não deixaram o Samu chegar”, denuncia o indígena. Segundo ele, o cerco fez com que os feridos ficassem nove horas esperando o socorro médico.
“Desde então segue o monitoramento intenso. Fazendeiros ficam passando de caminhonetes, xingando, falam que vão matar todo mundo. Assim estão os dias na tekoha Tatury”, descreve Wellington.
Um vídeo mostra dezenas de produtores rurais ao lado de tratores e de agentes da Força Nacional ameaçando e cercando a retomada Tata Rendy, em Terra Roxa (PR). “Mesmo com a presença da Força Nacional, os fazendeiros se mostram muito agressivos”, argumenta Wellington.
Incerteza
“A gente não sabe o que vai ser depois que esse prazo vencer”, se preocupa Wellington, se referindo à iminência dos despejos e mencionando a presença de idosos e crianças nas retomadas.
“A gente não sabe se os fazendeiros vão vir ainda mais para cima, se as polícias vão vir para cima da gente. Estamos vivendo uma incerteza, sem saber o que vai ser nosso dia de amanhã”, diz.
“No meio de tudo isso, o mais importante para nós, povo Ava Guarani, é que aprendemos a reivindicar nossos direitos”, destaca Noêmia. “Aprendemos a lutar”, completa.
- Nomes foram alterados para a preservação das fontes.
Edição: Nicolau Soares