Beirando o rio Anil na região central de São Luís (MA), cinco bairros concentram, com 160 mil habitantes, a maior população negra e, também, a maior diversidade de manifestações culturais e religiosas da diáspora africana na capital maranhense.
Terreiros, clubes de reggae, grupos de bumba meu boi, tambor de crioula, cacuriá e outras brincadeiras tradicionais do Maranhão são marca do Quilombo da Liberdade, considerado o maior quilombo urbano do Brasil.
O reconhecimento do complexo composto pelos bairros Camboa, Diamante, Fé em Deus, Liberdade e Sítio do Meio como quilombo urbano veio da Fundação Cultural Palmares em novembro de 2019.
Três anos antes, durante o Festival de Belezas Negras da Liberdade Quilombola, a comunidade assim se autodefiniu. A maior parte dos moradores descende da migração, no início do século 20, que veio do norte da ilha, da baixada maranhense e dos quilombos de Alcântara.
A “esquina Bob Marley” no Quilombo da Liberdade; São Luís leva o apelido de “Jamaica brasileira” / Gabriela Moncau
“A certificação é importante para a gente. Além de resgatar a luta que temos quanto à cultura popular e à religião de matriz africana, foi feito um inventário: são mais de 200 manifestações só nessa área do quilombo”, conta Biné Gomes Abinkó, filho do Terreiro de Iemanjá, a mais antiga casa da religião Tambor de Mina no Quilombo da Liberdade.
O Tambor de Mina, criado no século 19 na capital do Maranhão, é matriarcal e tem, entre as personagens envolvidas no seu surgimento, a rainha africana Nã Agontimé. Escravizada ao Brasil, Agontimé chegou a ter uma comitiva enviada por seu filho, rei de Daomé (atual Benin), em sua busca.
Era 1987 quando Biné, atual presidente da Federação de Umbanda e Culto Afrobrasileiro do Maranhão, chegou no Terreiro de Iemanjá, então comandado por Jorge Babalaô, professor e gestor público.
A casa religiosa descende do Terreiro de Egito que, fundado em 1870, foi o primeiro que permitiu que homens fossem feitos no Tambor de Mina. Eles tiveram, no entanto, que fundar seus próprios terreiros – daí veio o de Iemanjá em 1954, no bairro da Fé em Deus.
“E o pai Jorge, muito cedo, além da religiosidade, também fazia trabalhos sociais”, relata Biné. “Aqui também funcionou uma escola preparatória e cursos, ele tinha essa preocupação com a alfabetização”, explica.
Biné Abinkó, presidente da Federação de Umbanda e Culto Afrobrasileiro do Maranhão, no Terreiro de Iemanjá / Gabriela Moncau
“E aí começa a luta contra a intolerância, a violência, de tudo que nós e nossos ancestrais sofreram por ser de terreiro e por ter um terreiro aberto”, afirma Abinkó, que é também diretor do Museu do Negro em São Luís.
“Nós também passamos por esse processo, mas principalmente ele, que veio antes: muitas vezes a polícia vinha e parava os tambores”, relata. “Porque o primeiro terreiro que o povo saiu desse espaço sagrado ao público foi o Terreiro de Iemanjá”, diz. Atualmente, a casa é comandada por Mãe Dedé de Boço Có.
“Valoriza nosso potencial diante do mundo”
A poucos metros dali está o barracão do mais antigo boi de zabumba do quilombo: o Bumba Meu Boi da Fé em Deus. Sob bandeirinhas coloridas, se vê no muro o grafite do rosto de Antônio Ribeiro, o mestre Tunico, usando um tradicional chapéu de fita. É um dos que canta as toadas do grupo.
Mencionada na imprensa pela primeira vez em 1861 como um “estúpido e imoral folguedo de escravos”, “oposto à boa ordem, à civilização e à moral”, a brincadeira do bumba meu boi é hoje considerada a maior manifestação cultural popular do Maranhão.
Seus vários estilos são divididos em cinco sotaques: baixada, costa de mão, matraca, orquestra e zabumba. Cada sotaque reúne características próprias, incluindo coreografias, roupas, instrumentos e ritmo musical. A zabumba, a que mestre Tunico brinca desde os oito anos de idade, é considerada a matriz de onde todas as outras saíram.
“Hoje a gente tem dificuldade com o boi de zabumba. Porque os governantes não apoiam a gente”, avalia mestre Tunico. “Mas como a gente ama, gosta da brincadeira e já vem há muito tempo”, diz, calculando que o grupo da Fé em Deus tem 98 anos, “a gente não quer deixar cair. Está entendendo?”.
Mestre Tunico, na sede do Bumba Meu Boi da Fé em Deus / Gabriela Moncau
“E outra coisa, chegou o São João, se eu não brincar, não fico satisfeito”, garante mestre Tunico, sorrindo. Foi acompanhando sua trajetória que, desde pequena, a sua filha Ana Keila passou a “se apaixonar” pelo boi, segundo ela. Hoje preside o grupo.
“É uma satisfação e uma responsabilidade muito grande estar à frente de um batalhão”, conta Ana Keila, se referindo à forma como são chamados os grupos de bumba meu boi.
“O fato de ser mulher agrega certa dificuldade. Hoje em dia nem tanto, mas, no primeiro ano, é como se as pessoas não acreditassem no seu potencial, naquilo que você realmente pode fazer. Com o passar dos anos, a gente vai mostrando através do trabalho”, afirma Ana Keila.
“Já era tempo de ter vindo algo dessa grandiosidade para cá”, avalia, a respeito do reconhecimento da comunidade enquanto quilombo. “Vem para fazer com que a gente seja mais valorizado, tenha mais visibilidade. Fazer as pessoas entenderem que aqui nós somos um quilombo e que temos um valor muito grande, que é a diversidade cultural”, define Ana Keila.
“E o Quilombo da Liberdade vem fazer com que também a gente entenda o nosso valor, o nosso potencial diante do mundo”, acrescenta.
O surgimento do quilombo
A ocupação da área do Quilombo da Liberdade toma corpo quando, com o fim da escravidão no fim do século 19, proprietários de terra impulsionam a industrialização na região.
Ali foi instalado um complexo de fábricas têxteis, incluindo a Companhia de Fiação e Tecidos de Cânhamo, atraindo um grande fluxo migratório. Em 1918 é inaugurado, onde antes era o Sítio Itamacaca da escravocrata Anastácia Jansen Pereira, o principal local de abate de bois para a distribuição de carne no município.
Em busca de trabalho ou expulsos por projetos desenvolvimentistas, famílias pobres e majoritariamente negras se mudaram massivamente para o bairro que, perto do mar e da estação de trem, levou o nome de Matadouro. Foi em 1966 que, por decisão em plebiscito, o bairro foi rebatizado de Liberdade.
“Muito da nossa informação vem através da oralidade. São os nossos ancestrais que contavam. Então, toda essa área aqui era chamada de Matadouro. E foi construída por vários descendentes de quilombos oriundos de Alcântara”, narra Biné Abinkó.
“E o mar batia na porta do matadouro”, Biné estica o braço, como que apontando para a água. “Foram aterrando e dando espaço para pessoas vindas de outras cidades para esse grande complexo que hoje é o quilombo”, explica.
“Um lugar de patrimônio”
Mestra Rosa Barbosa, que organiza na sua casa o Centro Cultural Estrela do Divino, se lembra de quando “isso tudo era maré”. “Os barcos de Alcântara encostavam bem assim, entendeu?”.
Nascida em Cururupu (MA), mestra Rosa se mudou para a capital há meio século, quando tinha 10 anos de idade. Caixeira, coureira, artesã, parteira e rezadeira, atualmente está à frente dos grupos Filhos de São Benedito e Turma dos Crioulos. Este último é o mais antigo tambor de crioula em atividade de São Luís.
“Aqui na minha casa eu faço três festas por ano, com as forças do braço e Deus. Faço o boi. Faço o mastro de São Benedito que é o mastro da fartura”, conta, se referindo ao santo que é protetor dos negros e padroeiro do tambor de crioula. “Dia 28 de agosto eu levanto o mastro, aí dia 6 de setembro é a procissão e a festa”, diz.
“São Benedito, ele é muito milagroso para quem acredita. Porque era do tempo dos escravos, né?”, narra mestra Rosa. No seu salão, tomado por tambores, caixas, quadros, contas e um boi voltado a um altar, está também uma estátua em tamanho real de São Benedito.
Mestra Rosa Barbosa está à frente da Turma dos Crioulos, grupo de tambor de crioula que completou 80 anos em junho / Gabriela Moncau
Originalmente a escultura ficava na capela Madre Deus. Com a recorrência de roubos na igreja, pediram que ela a levasse à sua casa, com a certeza que estaria bem cuidada. “Minha irmã me chama ‘promessera’, porque eu faço promessa para São Benedito e cumpro”, se orgulha.
Resistência
No artigo Da festa ao ativismo no Quilombo da Liberdade: a atuação de mulheres no Bumba Meu Boi durante a pandemia de covid-19, as pesquisadoras Luciana de Carvalho e Wilmara Figueiredo apontam que os bairros que compõem o quilombo são alvos de “sucessivos programas autoritários de habitação e de segurança pública”.
“Mais preocupados com o ordenamento e o controle territorial do que com a qualidade de vida das pessoas, [estas ações] têm ameaçado suas formas de existência na grande área da Liberdade”, afirmam.
“Em reação a essas políticas”, continuam as antropólogas, “desde a década de 1980, ações coletivas organizadas, pontuais ou duradouras, surgiram como alternativas de contraponto ao descaso, à segregação, à violência e à usurpação de direitos historicamente sofridas pela população local”.
Entre essas iniciativas, estão os coletivos de cultura tradicional, o Movimento de Defesa dos Favelados e Palafitados, o Movimento Quilombo Urbano, o Instituto Iziane Castro e o Centro de Integração Sociocultural Aprendiz do Futuro (Cisaf).
Estes são alguns dos grupos que se organizaram na Gestão Quilombola: a articulação que arrancou, a despeito da então vigência do governo Bolsonaro, o reconhecimento da área como o primeiro quilombo urbano do Maranhão. “Somos resistência”, resumiu Biné Abinkó.
Edição: Martina Medina