Por Lavínia Kaucz e Gabriel de Sousa
O ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou nesta segunda-feira, 5, que a Procuradoria-Geral da República (PGR) investigue a atuação da ONG Transparência Internacional no Brasil. Toffoli afirma que a medida é necessária para apurar eventual apropriação de recursos públicos por parte da entidade, que, segundo a decisão, seria responsável por administrar a aplicação de R$ 2,3 bilhões em investimentos sociais previstos no acordo de leniência da J&F, firmado no âmbito da Operação Lava Jato.
Em nota publicada ontem, a Transparência Internacional afirmou que nunca se apropriou dos recursos obtidos pela Lava Jato, chamando de “falsas” as acusações que motivaram a decisão de Toffoli. “Reações hostis ao trabalho anticorrupção da Transparência Internacional são cada vez mais graves e comuns, em diversas partes do mundo. Ataques às vozes críticas na sociedade, que denunciam a corrupção e a impunidade de poderosos, não podem, no enfatizar, ser naturalizados.” (mais informações nesta página).
O despacho do ministro do Supremo foi dado seis dias depois de a entidade divulgar pesquisa mostrando que o Brasil atingiu a segunda pior colocação da história no Índice de Percepção da Corrupção (IPC) de 2023. O documento é produzido desde 1995. No levantamento, o País apareceu na 104.ª posição entre as 180 nações avaliadas pela entidade. Quanto melhor a posição no ranking, menos corrupto é considerado o país.
O relatório de 27 páginas, tornado público no dia 30 de janeiro, cita Toffoli nove vezes. Nos destaques ao nome do ministro, a ONG criticou a decisão do magistrado que anulou as provas de acordo de leniência da Odebrecht (atual Novonor), em setembro do ano passado. Recentemente, Toffoli também suspendeu o pagamento da multa bilionária aplicada à empreiteira.
‘Alienígena’
Na decisão de ontem, o ministro afirma que a colaboração da ONG na leniência da J&F não passou pelo crivo do Poder Judiciário e do Tribunal de Contas de União (TCU). “Segundo apontam as cláusulas do acordo, ao invés da destinação dos recursos, a rigor do Tesouro Nacional, ser orientada pelas normas legais orçamentárias, destinava-se a uma instituição privada, ainda mais alienígena e com sede em Berlim”, afirmou o ministro.
A ação foi apresentada inicialmente ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) pelo deputado federal Rui Falcão (PT-SP), em 2021. A notícia-crime aponta que “a ‘cooperação’ entre MPF e Transparência Internacional nos acordos de leniência poderia caracterizar infrações criminais, atos de improbidade administrativa, faltas disciplinares e violações de deveres éticos e funcionais”, conforme os advogados Marco Aurélio de Carvalho e Fernando Hideo Lacerda – representantes do deputado petista.
O ministro Humberto Martins, do STJ, decidiu enviar o caso diretamente a Toffoli, relator de processos no STF que apuram irregularidades na Lava Jato e a cooperação jurídica da força-tarefa com organismos internacionais.
Em dezembro do ano passado, Toffoli suspendeu a multa de R$ 10,3 bilhões do acordo de leniência do grupo J&F. Advogados do grupo informaram que o valor já foi repactuado para R$ 3,5 bilhões. A empresa defendeu ser necessário “corrigir abusos” do acordo, entre eles o suposto uso de provas ilícitas.
Na decisão, o ministro argumentou que há “dúvida razoável” sobre a regularidade do acordo e que, nesse caso, o mais prudente seria suspender os pagamentos.
Recurso
A PGR avalia a possibilidade de recorrer da decisão de Toffoli. O procurador-geral da República, Paulo Gonet, estuda os termos de um eventual recurso que possa reverter a suspensão das multas ajustadas pelas empresas com o Ministério Público Federal. O órgão afirma, no entanto, que o caso ainda está em análise e que não pode adiantar as providências que serão tomadas.
Se a PGR apresentar um agravo regimental (recurso interno), a decisão monocrática vai para análise da Segunda Turma da Corte e pode ser convalidada ou questionada pelos colegas. A Turma é presidida pelo próprio Toffoli e conta também com os ministros Gilmar Mendes, Edson Fachin, Kassio Nunes Marques e André Mendonça.
Outra opção da PGR é apresentar uma ação de competência do plenário do STF, como uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Esse tipo de ação tem o objetivo de evitar ou reparar alguma lesão a preceitos fundamentais que seja resultante de um ato do poder público. Nesse caso, a decisão vai a plenário com relatoria de um ministro sorteado, com exceção de Toffoli.
A PGR também poderia levar a decisão ao plenário por meio de uma suspensão de liminar. No entanto, segundo o Supremo, essa decisão poderia ser questionada, já que a decisão não foi uma liminar.
Assim que Toffoli suspendeu o pagamento da multa da J&F, a Transparência Internacional publicou uma nota afirmando que era “desconcertante” que um único ministro do Supremo fosse capaz impedir a continuidade o pagamento do acordo de leniência. Segundo a ONG, a decisão foi baseada em “acusações infundadas”. Disse ainda que a empreiteira, comandada pelos irmãos Joesley e Wesley Batista, cometia um “assédio judicial”.
‘Heterodoxias’
No relatório da entidade sobre o Índice de Percepção da Corrupção, o nome de Toffoli aparece em uma crítica às “reservas de autoridade” e “poderes exacerbados” do Judiciário. Segundo a Transparência Internacional, as decisões do magistrado para anular e suspender o pagamento dos acordos de leniência foram tomadas com “fortes evidências de conflitos de interesses”.
“Talvez os exemplos mais graves tenham sido as ações sob relatoria do ministro Dias Toffoli, nas quais o magistrado decidiu, monocraticamente e com fortes evidências de conflitos de interesses e outras heterodoxias processuais, sobre demandas que tiveram imenso impacto sobre a impunidade de casos de corrupção”, afirmou a ONG. “Ambas as decisões foram objeto de intensas críticas também pelas evidências de conflitos de interesses, já que, no primeiro caso, o ministro Toffoli havia sido citado nas delações de Marcelo Odebrecht e, no segundo, sua esposa advoga para o grupo J&F.”
E-mails apreendidos no computador de Marcelo continham um codinome chamado “amigo do amigo do meu pai”, que o empresário posteriormente disse se tratar do ministro do STF.
Transparência Internacional diz ser alvo de ‘assédio’
A Transparência Internacional negou ontem que tenha recebido ou gerenciado valores de acordos de leniência firmados pela Lava Jato. Em nota, a organização afirmou que produziu e apresentou estudo técnico com “princípios, diretrizes e melhores práticas de transparência e governança para a destinação de ‘recursos compensatórios’ (multas e recuperação de ativos) em casos de corrupção”.
O relatório, ainda segundo a entidade, incluía a recomendação de que o Ministério Público não deveria ter envolvimento na gestão de recursos. “O estudo e as recomendações não tiveram e não têm qualquer caráter vinculante ou decisório”, diz.
De acordo com a entidade, o memorando de entendimento que estabeleceu a cooperação entre Ministério Público, J&F e Transparência Internacional expirou em dezembro de 2019 e não foi renovado.
“Tais alegações já foram desmentidas diversas vezes pela própria Transparência Internacional e por autoridades brasileiras, inclusive pelo Ministério Público Federal. Apesar disso, estas fake news vêm sendo utilizadas há quase cinco anos em graves e crescentes campanhas de difamação e assédio à organização”, afirma outro trecho da nota. (COLABOROU RUBENS ANATER)