Por Rayssa Motta e Pepita Ortega
O ex-presidente Michel Temer (MDB) defendeu nesta terça, 14, o papel do Congresso e afirmou que o Supremo Tribunal Federal (STF) “não pode substituir o legislador”. “Ele (Supremo) pode dar um puxão de orelha no Legislativo, apontando omissão. Não me parece que a Constituição deu uma função ao Judiciário além daquela que lhe cabe, que é julgar”, disse o emedebista. A ministra Cármen Lúcia, por sua vez, negou que a Corte avance sobre atribuições do Congresso e declarou que os magistrados não podem se omitir se acionados.
“O STF pode decidir, mas o Legislativo pode vir depois e editar uma emenda constitucional, dizendo que o sistema é tal a partir de hoje. Nesse caso, a decisão do Supremo vigora durante um breve período e, quando vem a nova normativa, perde eficácia a decisão. É assim que você compatibiliza a atuação dos dois Poderes”, afirmou Temer, durante o seminário “O papel do Supremo nas democracias”, promovido pelo Estadão e pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, na capital paulista.
O ex-presidente propôs, ainda, um “acordo” para distensionar a relação entre Legislativo e Judiciário. Decisões recentes do Supremo causaram reações na Câmara e no Senado. Parlamentares acusam o tribunal de usurpar competências do Legislativo em pautas como marco temporal de demarcação de terras indígenas, drogas e aborto. E, para marcar posição, resgataram propostas que preveem alterações no funcionamento da Corte e limitações a atos dos ministros.
‘Última palavra’
Temer abordou duas vertentes de atuação do Judiciário: uma que faz a interpretação literal da Constituição e outra que propõe uma interpretação “sistêmica” da lei maior, como no caso em que o Supremo decidiu sobre a possibilidade de aborto em casos de anencefalia. Sobre a interpretação sistêmica, ele ponderou: “A pergunta é: o STF pode fazer isso? Eu acho que pode, mas a última palavra, como representação popular, é do Legislativo”.
O ex-presidente citou a questão do marco temporal – tema que gerou embate com o Parlamento quando o Supremo derrubou a tese de que os indígenas teriam direito apenas às terras que ocupavam em 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição. Temer criticou o que chamou de “divulgação extraordinária de disputa” e a “radicalização de posições, sem um debate de ideias”.
“Cria-se um clima em que, em vez de haver uma discussão jurídica no caso de um projeto do Senado, por exemplo, há uma discussão de radicalizações. Isso não é útil para o País. Repercute, no âmbito interno, negativamente, e no âmbito externo, mais negativamente ainda”, afirmou o ex-presidente.
Temer ressaltou que os investidores estrangeiros buscam segurança jurídica e reforçou a necessidade de uma “solução” para conflitos entre Judiciário e Legislativo. “O STF decide. Muito bem, decidido está. Mas, logo ali adiante, o Legislativo, se quiser, produz uma nova ordem normativa que retira a eficácia da decisão.” Na avaliação de Temer – que foi presidente da Câmara por três vezes -, a Constituição fixou limites para a atuação do Judiciário, no sentido de que a Corte pode declarar omissões do Legislativo, mas não “suprir” tais lacunas. “Não há possibilidade de decisão acima do texto constitucional”, completou.
Constituição
Cármen Lúcia rejeitou a ideia de que o STF seja “ativista”. “Somos obrigados a agir e fazer com que a Constituição não seja uma letra escrita em um livro que fica numa prateleira, mas que seja a palavra a partir da qual nós realizamos a vida que a gente se põe a viver”, afirmou a ministra. Ela saiu em defesa do tribunal durante palestra de encerramento do seminário.
A ministra também disse que a Constituição delegou ao Judiciário a atribuição de garantir o respeito aos direitos fundamentais para evitar que eles ficassem sujeitos à vontade política. “A Constituição estabelece essa função para instituições que não são político-partidárias, que não são do chamado jogo político, mas que são juízes, que têm que atuar de acordo com o Direito.”
Para Cármen, a atuação do STF ficou mais evidente porque o País precisou lidar com ataques antidemocráticos. Ela afirmou que o tribunal agiu com “firmeza” diante da escalada de ataques, que chegou ao ápice com os atos golpistas do dia 8 de janeiro na Praça dos Três Poderes: “A Constituição não se abalou, o Supremo não se abalou, e continuamos trabalhando todos os dias.”
Autoritarismo
Na segunda-feira, 13, no primeiro dia do seminário, o presidente do Supremo, ministro Luís Roberto Barroso, declarou que a Corte foi “um dique relevante contra avanço do autoritarismo”, também ao rebater alegações de ativismo judicial por parte do tribunal
Cármen Lúcia foi na mesma linha e lembrou que o tribunal age quando provocado. “O Supremo é chamado a responder e tem respondido de maneira que muitos chamam de ativista, mas, no Brasil, nenhum juiz pode decidir nada sem motivação expressa, formal e pública, e é isso que nós fazemos.”
Em painel antes do encerramento do seminário, a ministra fez enfática defesa da Justiça Eleitoral. “Não tenham nenhum momento de preguiça cívica, pois o preço será um dia você ter que lutar muito mais fortemente pela democracia, pelas suas liberdades”, disse, se dirigindo aos jovens. Questionada sobre o fato de ser, atualmente, a única mulher da Corte, afirmou que o Judiciário ainda é “machista”. Depois da aposentadoria de Rosa Weber, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ainda não indicou um nome para a cadeira.
Competência
Temer participou de painel que discutiu a dinâmica entre tribunais e regimes presidencialistas e a politização das Cortes O jurista e professor Ives Gandra Martins e a professora Rosalind Dixon, da University of New South Wales (UNSW/Sidney) também integraram a mesa.
Ives Gandra defendeu a delimitação entre os poderes. “O soberano em uma democracia é o povo, e essa soberania só pode ser exercida por seus delegados e seus delegados estão no Poder Legislativo e no Poder Executivo”, afirmou o jurista, que tem sido um dos porta-vozes a favor da contenção do Poder Judiciário
Na avaliação dele, os ministros do STF têm “invadido” competências dos outros poderes. “Que voltem a ser um poder relevante para a democracia brasileira, de fazer com que a lei seja respeitada, mas sem invadir competência do Poder Legislativo e do Poder Executivo quando diz de que maneira o Poder Executivo tem que administrar a Nação”, afirmou Ives Gandra. “Os poderes foram definidos exaustivamente na Constituição.”