A Petrobras tem todas as condições de liderar o debate e as ações sobre transição energética e são as políticas de Estado atuais que possibilitarão o protagonismo da estatal no desenvolvimento do país, essa é a opinião da economista Renata Belzunces, do Departamento Intersindical de Estatística de Estudos Socioeconômicos (Dieese).
Mas, segundo ela, propor a substituição da energia não-renovável e oriunda de fontes fósseis para a energia limpa demanda ir além da lógica paradoxal de “explorar cada vez mais petróleo para deixar de explorar petróleo”.
“É como se a gente pensasse assim: ‘Vamos comer bastante, vamos comer muito mais, mas a nossa meta é abaixar o peso’. Os países de renda média, renda média baixa não estão livres de cair nessa armadilha, de buscar mais petróleo com a ideia de, a partir disso, obter recursos para investimento em outras fontes de energia”, afirma a economista.
Confira a entrevista:
Brasil de Fato: Do que estamos falando quando falamos em “transição energética”? Você pode explicar a ideia e dar exemplos?
Renata Belzunces: Quando falamos em transição energética, estamos tratando da mudança das fontes de obtenção de energia, tanto para a matriz energética quanto para a matriz elétrica. Quando a gente fala de matriz energética, estamos falando sobre todas as formas de energia para mover tudo aquilo que fazemos uso hoje.
Desde a luz que a gente acende em casa até a energia que é utilizada na siderurgia para transformar minérios e, depois, em artefatos que vão ser utilizados para a construção civil e vão chegar na nossa casa, vão chegar no nosso cotidiano, vão para outros setores da indústria, e assim por diante. Estamos falando de uma transição bem ampla das formas de obter energia.
Nós temos hoje no mundo, segundo os dados divulgados pela EPE (Empresa de Pesquisa Energética), que 85% das fontes energéticas são não-renováveis, ou seja, provêm de fontes fósseis, e apenas 15% é renovável. O Brasil tem uma situação mais confortável, temos 51,6% de fontes não-renováveis e 48,4% de fontes renováveis.
Temos nesses 51,6% o petróleo, a energia nuclear, o carvão mineral e outras fontes não-renováveis, mas a maior parte dela é de petróleo e derivado com 35,7%, o carvão com 4,6%, o gás natural com 10,6% e a nuclear bastante residual com 1,3% e outras não-renováveis 0,6%.
O nosso desafio é substituir e diminuir muito esses 51,6% que a gente utiliza pra mover a nossa sociedade e ainda provêm de fontes não-renováveis. A transição energética não tem apenas aspectos técnicos como muitas vezes se quer fazer pensar.
Ela não é só uma relação entre disponibilidade de recursos não-renováveis como o carvão e o petróleo versus a disponibilidade de recursos renováveis, como os ventos para fazer a geração de eólica, a disponibilidade de sol para fazer a energia fotovoltaica ou ainda, no nosso caso, da matriz elétrica, a nossa grande disponibilidade de corpos d’água, os rios que contribuem com 62% da nossa matriz elétrica. Existem esses fatores, eles são relevantes e não devem ser desconsiderados.
Mas quando a gente fala também sobre transição energética, a gente pensa muito numa transição energética que faça muito jus a uma transição energética que seja justa, que significa utilizar formas de energia que tragam uma distribuição de renda menos desigual ou, em outras palavras, que possibilite que mais pessoas sejam beneficiadas com a obtenção das rendas da geração de energia. Hoje, as rendas oriundas da geração, inclusive a hidráulica e a renda do petróleo, são rendas extremamente concentradas, pois beneficiam muito um pequeno grupo de pessoas, emprega cada vez menos trabalhadores e distribui poucos recursos para as populações onde esses empreendimentos estão localizados.
Falar em transição energética justa também significa pensar no futuro dos trabalhadores e das regiões que recebem hoje os empreendimentos que devem ser diminuídos ou devem ser extintos. Um exemplo no Brasil que é muito patente é o carvão. O carvão é 4,6% da nossa matriz energética, mas ele emprega 4.500 trabalhadores de forma direta e 60 mil de forma indireta.
Falar simplesmente “vamos sair do carvão e não olhar para esses trabalhadores e essas regiões” não vai ter como resultado uma transição energética justa. Nunca é apenas sobre técnica, é muito também sobre a geração das rendas que essas energias proporcionam e a distribuição entre os atores sociais que se apropriam dessa renda.
Os atores sociais são os empresários, os donos do capital, os trabalhadores, as comunidades que precisam receber as reparações por perderem parte dos seus territórios e, inclusive, muitas vezes parte de sua saúde para esses empreendimentos e o governo que arrecada via impostos ou muitas vezes até deixa de arrecadar. Transição energética é mudar as formas como se obtém energia e pensar como ela pode ser mais justa.
Como o Brasil tem se preparado para tudo isso no âmbito da Petrobras, por exemplo?
É muito importante que, antes de tudo, a gente comemore o fato de ainda termos uma empresa estatal, de ainda termos a Petrobras e de entendermos que ela pode, sim, ser uma grande liderança na transição energética brasileira. Termos mantido essa empresa pode ser um trunfo.
A Petrobras vinha em um processo de se pensar como uma empresa de energia, ou seja, para além do petróleo, através da pesquisa de outras fontes, de outras renováveis, inclusive para fazer o refino em suas próprias instalações, fazendo modificações técnicas, tecnológicas para ampliar o seu parque de refino para que a gente pudesse falar de energia, e não apenas de petróleo.
Infelizmente, a partir do golpe de 2016 a gente quase perde a empresa, ela abandona em grande em grande parte a operação de refino, com privatizações nesse setor e foca na exploração de petróleo. Então, é possível comemorar, a gente deve comemorar termos a Petrobras para fazer a transição energética. Há armadilhas nisso, armadilhas que a gente precisa evitar.
Uma dessas armadilhas certamente é explorar cada vez mais petróleo para fazer a transição energética. Explorar cada vez mais petróleo para deixar de explorar petróleo é como se a gente pensasse assim: “Vamos comer bastante, vamos comer muito mais, mas a nossa meta é abaixar o peso”. Os países de renda média e renda média baixa não estão livres de cair nessa armadilha, de buscar mais petróleo com a ideia de, a partir disso, obter recursos para investimento em outras fontes de energia. Esse é o principal senão ou a principal armadilha que envolve a Petrobras. Mas a empresa é crucial e tem condições de liderar a transição energética no Brasil sem dúvida.
Que impactos essas mudanças na produção e consumo podem gerar economicamente e para o meio ambiente?
A produção e o consumo são faces de como a gente tem impulsionado a economia no capitalismo e quando a gente pensa em transições energéticas e meio ambiente, é preciso saber o quanto que a gente pesa as políticas sobre um lado e sobre o outro lado para que a gente possa obter sucesso. Políticas e campanhas como reduzir o tempo que você passa no chuveiro elétrico, não usar o canudinho, não usar a sacola plástica, comprar menos roupas, principalmente essas de “fast fashion”, tudo isso é uma forma de você buscar modificação do consumo. E é importante.
No entanto, é muito mais relevante a modificação pelo lado da produção. É pelo lado da produção que você consegue atuar em variáveis que tem larga escala e tem largo alcance.
Se você desestimula, por exemplo, os subsídios para combustíveis fósseis e usa esses recursos para promover, ampliar a produção fontes renováveis de energia, você tem um impacto grande na produção e não deixa essa opção para o consumidor. É muito bom que o consumidor tenha opções, mas precisamos entender que estamos falando de um país que até há pouco tempo tinha 30 milhões de pessoas, talvez seja menos hoje, em insegurança alimentar.
São pessoas que muito pouca opção vão poder fazer. Deixar a opção de escolha pelo lado do consumo é, a meu ver, desconsiderar que vivemos em um país que muitas poucas pessoas podem realmente fazer opções de consumo. As que podem fazer opção devem fazer. Consumir alimentos que são preparados de forma agroecológica, deixar o carro em casa ou utilizar outra fonte de energia para o seu carro – o carro elétrico ainda é muito caro – mas o grande vetor no Brasil é, sem dúvida, atuar pelo lado da produção, atuar pelo lado em que você pode mexer em variáveis com grande escala.
Que empecilhos existem à implementação desses novos modelos e que desafios e barreiras existem hoje?
O primeiro obstáculo que o Brasil tem hoje, sem dúvida, é recuperar as políticas ambientais. Desde a COP-21, em Paris, em 2015, em que os países atuaram a partir de declararem voluntariamente metas de redução de CO2, nós entramos em conjunturas políticas internas muito desfavoráveis para transformar esses objetivos em planos que tenham metas e tenham métricas, que em que cada setor econômico possa entender aquilo que ele tem que atingir e como ele vai atingir. Sem isso fica muito abstrato.
Além de recuperar as políticas ambientais, a gente precisa recuperar a governança, o que significa recuperar os órgãos de Estado que atuam nisso, esses órgãos precisam conversar. A ministra Marina Silva [do Meio Ambiente] tem sempre insistido que a política ambiental deve ser uma política transversal porque ela tem que estar em todos os ministérios.
Não é só o Ministério do Meio Ambiente e Mudança Climática que pode atuar e fazer políticas, e com isso esperar obter resultados. Isso, por mais que seja óbvio, não é muito simples, mas é evidentemente possível desde que haja vontade política e compreensão. Da parte da sociedade, cresce cada vez mais a compreensão sobre a necessidade de o Estado atuar nisso. Agora cabe ao Estado, cabe aos governantes se resignarem a essa vontade popular e toparem trabalhar juntos. Isso é muito importante e é fundamental.
Saindo um pouco de um campo que é mais abstrato, quando a gente fala em obter bons resultados, a gente precisa entender que o fundo público, que os recursos públicos, aqueles recursos que são arrecadados via impostos ou que deixam de ser arrecadados porque há setores que tem isenções e se beneficiam disso, a gente precisa fazer uma modificação visando a melhoria do meio ambiente, visando diminuir a redução de CO2, visando não apenas trabalhar o Brasil como se fosse só a Amazônia, que é fundamental, mas ele é muito mais do que a Amazônia.
Então para que a gente possa fazer tudo isso, a gente precisa direcionar recursos públicos para os setores que precisam crescer e tirar recursos públicos dos setores que precisam diminuir. E esses setores que precisam diminuir são muitos e, evidentemente, vai haver muita resistência. E aí, mais uma vez, a transição energética se mostra não só técnica, mas também como uma questão social para os setores que vão diminuir. E a gente precisa oferecer alternativas, sobretudo para os trabalhadores e para as pessoas que dependem de forma indireta também dessa renda. A transição energética tem aspectos técnicos, mas tem também aspectos sociais e aspectos políticos, por isso ela também é tão desafiadora e precisa de todos nós, precisa que todos os atores participem, se não ela vai ficar incompleta e injusta.
Fonte: BdF Rio de Janeiro
Edição: Jaqueline Deister