Da guerrilha ao Congresso Nacional, José Genoino participou de forma ativa da política brasileira nos últimos 60 anos. Fez parte da luta armada contra a ditadura militar, na década de 1960, e viveu a política institucional em cinco mandatos consecutivos como deputado federal. Quadro histórico do PT, agora viaja pelo Brasil fazendo política “com as bases”.
Em passagem por Curitiba, Genoino falou com exclusividade ao Brasil de Fato Paraná. Analisando o cenário político atual, diz que o Brasil não vive uma democracia, mas um “processo inconcluso” que vem desde o golpe que depôs Dilma Rousseff em 2016. O novo governo Lula, em sua visão, precisa “construir uma política de transformação do país”.
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Tão radical quanto na década de 1960, Genoino defende que a esquerda brasileira enfrente o sistema financeiro e deixe explícita a necessidade de superação do sistema capitalista. “Nós temos que recuperar a ideia da utopia, do sonho. A esquerda não pode ser domesticada pelas luzes palacianas”, afirma.
Confira trechos da entrevista:
Brasil de Fato Paraná: Na história recente do Brasil, houve um golpe de Estado na década de 60, um novo golpe em 2016 e a eleição de um presidente que enaltece o golpe de 64, chamando de revolução. Agora, com a eleição de Lula, é possível dizer que o país vive uma democracia?
José Genoino: Não. Eu acho que o Brasil está vivendo um processo inconcluso, incompleto. Nós tivemos a tentativa de golpe em 1954, com o suicídio do Vargas, adiou o golpe por 10 anos, veio a crise de 1964, a luta pelas reformas de base, o período da ditadura militar e uma transição que não alterou as bases políticas do regime autoritário. Nós fomos para uma democracia liberal, cujo marco foi a Assembleia Nacional Constituinte de 1988, mas sem fazer alterações de fundo, principalmente no que diz respeito ao papel das Forças Armadas e à organização das instituições políticas. Esse processo, que foi um avanço, também foi incompleto.
É interessante observar que tanto o golpe de 1964 quanto o de 2016 tem como fundo a questão dos direitos sociais: 2016 era o povo no orçamento, 1964 eram as reformas de base, 1954 era o salário mínimo.
Veja bem, o Brasil passou por um cavalo-de-pau nas instituições democráticas com o golpe de 2016. Esse golpe desorganizou, vulnerabilizou, criminalizou a política, enfraqueceu as instituições do Estado republicano, e veio um governo que foi a barbárie. Tivemos quatro anos de destruição das políticas sociais, da soberania, risco às liberdades, destruição daqueles avanços de inclusão social, e por um fio nós derrotamos a tragédia.
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E, ao derrotar a tragédia, nós estamos num processo de reconstrução do país. Estamos enfrentando uma encruzilhada: para atender às reivindicações populares e enfrentar a crise, o governo Lula tem que reconstruir novas bases democráticas, de programas sociais, de crescimento econômico, reindustrialização do país, financiar políticas públicas, novas bases do sistema tributário e novas bases de relação com o mundo globalizado.
Eu acho que o caminho nosso é de construir novos elementos para uma política de transformação do país. Para isso, nós temos que derrotar a extrema direita, temos que enfrentar o neoliberalismo e temos que enfrentar, na questão internacional, esse contexto de guerra em que o mundo está saindo da unipolaridade para a multipolaridade.
Portanto, nós vivemos um período de conflito, de transição aguda, em que ninguém pode ficar deitado nos louros da vitória. Foi um alívio a derrota do inominável, o Lula tem um papel importante, mas nem tudo depende dele. Eu acho que nós temos que combinar um elemento central para tirar o Brasil dessa encruzilhada e o Brasil passar por uma purgação, que são as ruas, a mobilização popular. Temos que combinar rua e palácio, palácio e rua.
Pensando em enfrentar o neoliberalismo: Lula foi eleito com uma união de forças vindas também do campo neoliberal. É possível fazer esse enfrentamento neste governo?
É desafiante, o Lula é o maestro, porque ele construiu essa política de aliança na campanha, na transição e no ministério. Essa frente ampla, sozinha, não dá conta das tarefas que estamos analisando aqui.
Por isso, eu advogo a necessidade de uma frente de esquerda, de natureza democrático-popular, com uma pauta que trate dos interesses populares, que radicalize a democracia, que enfrente o que eu chamo de alma mater desse modelo: banco central independente, privatizações, teto de gastos. Não adianta só o ajuste fiscal do Haddad, porque ele mantém a tirania fiscal com outro nome.
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E que a gente enfrente a relação conflituosa com os Estados Unidos. Essa posição do Brasil na política externa [tem importância] particularmente na integração sul-americana. A visita [de Lula] à China vai acirrar uma espécie de contrariedade do império americano, da Otan e da União Europeia.
O senhor sempre foi considerado uma pessoa que conversava bem com os militares. Como analisa a atuação recente dos militares?
Primeiro, as Forças Armadas foram capturadas por uma espécie de partidarização com a campanha do inominável [Jair Bolsonaro], com a eleição dele, com a ocupação de cargos. Todo o alto comando do exército foi para os ministérios, para as estatais. As Forças Armadas estão registrando uma página trágica, nefasta da sua história, talvez tão nefasta quanto na época da ditadura militar.
Eles [militares] guardam uma concepção doutrinária do poder moderador, que vem do império. A lei e a ordem são a base do poder moderador que eles cultuam como se fossem donos do Estado e do monopólio da pátria. Em nome disso eles têm autonomia, não prestam contas a ninguém. E eles se organizam como uma casta. Nos governos Lula e Dilma a gente não percebeu isso.
Eu acho que essa questão é muito séria, porque as Forças Armadas nunca passaram por uma mudança profunda sobre a concepção doutrinária, o que é uma política de defesa para um país como o Brasil, quais são nossas debilidades em torno estratégico do espaço aéreo e das águas, como se inserir no mundo sem ter conflito imediato.
Nós temos que ter uma política de defesa dissuasória. Não é ser uma força de ocupação, é ter pronta resposta nas áreas sensíveis. Um país como o Brasil, com dimensão continental, precisa ter Forças Armadas modernas, menores do que a que nós temos, ter acesso à tecnologia, diminuir o número de generais, almirantes e brigadeiros e ter forças que protegem o país. Essa ideia de segurança pública, garantia da lei e da ordem, de tanque e baioneta, não dá. As Forças Armadas têm que ser mais especializadas.
Em entrevista à Jacobin Brasil, em 2021, o senhor disse que “de certa maneira, o PT se acomodou muito nas instituições de Estado e se afastou da luta social”. Agora, novamente sendo governo, como deve ser a atuação do partido?
Palácios e ruas. O erro nosso de 2003 até 2016 foi que a gente foi capturado por uma institucionalidade autocrática, elitista e altamente centralizadora burocraticamente e nós saímos das ruas, isso facilitou o golpe. Nós desenvolvemos políticas de inclusão, crescimento econômico, programas sociais, mas isso contrariou os interesses de uma classe dominante escravocrata, machista, patriarcal e autoritária. Como nós não fizemos o enfrentamento nas ruas, ficamos reféns das articulações congressuais.
A lição que eu tiro é que o PT tem que combinar articulações congressuais, na mídia, na opinião pública com mobilização da sociedade. O PT não pode se iludir e achar que a governabilidade vai depender do status quo. Eu acho que o governo do PT hoje tem que desenvolver uma governabilidade tensionada, tem que tensionar as grandes questões. Não estou dizendo fazer uma ruptura total, mas tem certas questões que tem que tensionar, porque senão não arranca as conquistas.
Por exemplo: eu acho que o ajuste fiscal do Haddad precisa recuperar o papel do Estado no investimento público, tirar aqueles gatilhos que limitam a arrecadação para simplesmente garantir superávit primário. Nós temos que romper com as amarras. Como vamos enfrentar a taxa de juros elevada? Como vamos enfrentar a revogação do Novo Ensino Médio? Só através de rua, de mobilização.
A radicalidade é dada pela crise, fome, desemprego, baixos salários, a crise na educação, na saúde, a violência permeando as relações. Ou a gente radicaliza no sentido de ir na raiz ou a gente fica refém de um status quo que mantém as coisas como estão.
O senhor tem defendido uma radicalização à esquerda, tem falado sobre a necessidade de um projeto socialista para o país. Isso é possível no curto prazo?
Nós temos que trabalhar no curto, médio e longo prazos. A política, quando não é portadora de futuro, se perde nos descaminhos do imediatismo.Nós estamos vivendo uma crise sistêmica, cultural, social, ambiental, econômica e civilizatória. O futuro da humanidade está ameaçado. O futuro da humanidade está exigindo que a esquerda seja protagonista.
Eu sei que de imediato nós temos que melhorar a vida do povo. Mas nós temos que dizer que o que nós queremos é acabar com esse sistema capitalista. Nós não vamos acabar de imediato, mas temos que sinalizar. Temos que ligar o imediato com o futuro, a tática com a estratégia.
Eu acho que está faltando isso da esquerda. A esquerda está em uma certa defensiva, surgiu um problema novo que é uma extrema direita com mobilização social. Como a esquerda vai disputar com essa extrema direita se não fala dos seus ideais?
Esse sistema não tem solução, não adianta remendar, porque ele depende da acumulação financeira privada e monopolista. Eu estou convencido de uma coisa: ou você peita o sistema financeiro ou não tem solução definitiva. Porque o sistema financeiro depende dos donos de banco e dos investidores. Para que serve o superávit primário? Para valorizar os títulos da dívida pública e facilitar os que especulam com essa dívida.
Nós temos que criar uma cultura de crítica a esse sistema. Porque senão, como eu vou dialogar com essa geração que é sacrificada pela uberização, com a juventude que é sacrificada pelo ensino médio que é uma escravização, pela falta de perspectiva de emprego?Nós temos que recuperar a ideia da utopia, do sonho. A esquerda não pode ser domesticada pelas luzes palacianas.
Fonte: BdF Paraná
Edição: Lucas Botelho