Alguns dias antes do 8 de março, recebi de um grupo de Whatsapp o chamado para os atos na rua: “Legalizar o aborto! Direito ao nosso corpo! 8 de Março é na Av. Paulista”. Há tempos temos pensado como dialogar com a classe trabalhadora mais empobrecida sobre o debate de gênero e como criar formas de participação mais efetiva das mulheres mães, trabalhadoras – a maioria com um pertencimento religioso conservador – em atos e manifestações nos espaços públicos a partir de nossas agendas, destacando aqui o Dia Internacional de Luta das Mulheres.
Em conversas com algumas companheiras da Argentina, que por muitas vezes lotaram as ruas de Buenos Aires e tantas outras províncias, alguns apontamentos foram dados, como por exemplo, um trabalho cotidiano preparatório nos territórios e villas para o 8 de março nas ruas – garantindo, por exemplo, além do debate, transporte para que cheguem aos locais. Obviamente que um chamado “Legalizar o aborto!” não irá sensibilizar de imediato boa parte das mulheres periféricas com uma rotina tão esgotadora e com visões mais conservadoras sobre o aborto a estar em marcha nesses espaços tão importantes para a esquerda.
Mas, então, não vamos falar de aborto, corpo e sexualidade com as mulheres empobrecidas, moradoras das periferias e evangélicas? Essa resposta ainda não é tão simples e não está pronta. Nos parece importante pensar como o fundamentalismo religioso tem atuado no nosso país e no continente latino-americano a partir das pautas de gênero para entendermos que, mais do que reagir às suas bandeiras, temos que construir nossas formas de diálogo sobre esses temas, garantindo que todas as mulheres trabalhadoras, em todas suas identidades, se sintam parte de espaços coletivos e de luta, organizados pelo campo progressista.
As pautas morais, vinculadas principalmente aos direitos reprodutivos e à sexualidade, defendidas pelo fundamentalismo religiosos, são bandeiras importantes que vinculam boa parte da classe trabalhadora a um projeto ao qual são a principal vítima. Essas bandeiras se manifestam não só em discursos tempestuosos de alguns pastores midiáticos ou nos grandes templos e igrejinhas de bairro, mas no Poder Executivo e no Judiciário.
Isso tem sido endêmico em nosso continente. A visão falaciosa vinculada a um pânico moral, a qual essas pautas são colocadas, foi usada para fins eleitorais a partir do termo “cultura da morte” em países como Colômbia e Costa Rica, por conta da associação com a defesa ao aborto, negligenciando toda a profundidade e complexidade de raça, classe e gênero que o tema aborda. Ao olharmos para a conjuntura atual, conseguimos ver na prática como essas bandeiras seguem sendo construídas a partir da base de nossa classe rumo a ações concretas em diversas instâncias de poder, sejam elas institucionalizadas ou não, com forte adesão popular, inclusive ocupando as ruas, espaço historicamente usado pela esquerda latino-americana na luta por direitos.
Grupos religiosos de mãos dadas com o conservadorismo das elites latino-americanas têm saído às ruas contra a legalização do aborto. A aliança entre religiosos e políticos conservadores têm o mesmo discurso e a mesma estética em diversos países, envolvendo principalmente jovens e mulheres, criando movimentos articulados nas redes sociais, nas igrejas e nas ruas. A inserção do fundamentalismo religioso na disputa de aprovação das leis tem sido, muitas vezes, determinante para frear pautas importantes e amplamente debatidas pelos setores progressistas contra o patriarcado.
No Peru, a campanha “Con mis Hijos no te Metas” atravessou não só as ruas, mas também a percepção do que deve ou não deve ser dito na educação básica das crianças do país em um movimento parecido com o que tivemos por aqui: barrar o engodo da “ideologia de gênero” nas escolas. A campanha se multiplicou em países da América Latina e também na Europa. No Equador, diversas vertentes religiosas têm atuado em protestos de rua com uma roupagem laica, mas que ao serem olhadas mais de perto, seguem a agenda fundamentalista em seus discursos e disputas.
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Na Argentina, para além das ruas, diversas pesquisas dentro das universidades têm sido realizadas por grupos laicos, aparentemente “neutros”, com o objetivo de reafirmar ideias fundamentalistas, dando um aparente caráter científico para o debate. Sabemos que não raro a “defesa da vida” contra a legalização do aborto vem sendo realizada a partir de supostos dados científicos que mensuram quando um feto pode realmente ser chamado de vida (desde a concepção, segundo evangélicos conservadores).
No ano passado, em Cuba, foi discutido e votado em plebiscito o Código das Famílias, um novo entendimento legislativo acerca das formas de família, proteção aos mais vulneráveis em caso de violência, casamento homoafetivo, entre outros pontos. A vitória do Si para a aprovação do código foi um respiro muito importante contra o fundamentalismo religioso que também atravessa a ilha. Bispos católicos se pronunciaram contra a aprovação do código, reivindicando a defesa da “família original”, ou seja, nem Cuba esteve imune ao conceito fundamentalista sobre família, mesmo com políticas tão avançadas no que diz respeito à questão de gênero.
No Brasil, a vinculação principal entre as ideias estapafúrdias e mesmo criminosas do governo Bolsonaro junto a classe trabalhadora foi mediada por pautas vinculadas ao fundamentalismo religioso. Evangélicos calvinistas e protestantes históricos fomentaram com afinco esses discursos e ocuparam ministérios importantes como o da Justiça, com o pastor André Mendonça, hoje ministro do STF, e da Educação, com o também pastor Milton Ribeiro. A pastora batista Damares Alves, que foi ministra da Mulher, da Família (termo criado na gestão Bolsonaro) e dos Direitos Humanos – figura popular entre os evangélicos e que narra uma história própria de opressões e violências de gênero -, atuou fortemente contra a igualdade de gênero e as liberdades sexuais, articulando internacionalmente ações contra a legalização do aborto. Associações jurídicas como a Associação Nacional de Juristas Evangélicos (ANAJURE) tem tido uma atuação extremamente pró-ativa na defesa contra a legalização do aborto no meio jurídico, impulsionando representatividade do campo evangélico conservador em espaços como a Defensoria Pública da União.
Há pelo menos três décadas, a direita cristã, vinculada às ações imperialistas, têm atravessado o continente latino-americano ganhando corações e mentes do nosso povo, principalmente das mulheres mais empobrecidas, a partir de uma visão de mundo ligada a uma mulher submissa e alienada de seu próprio corpo.
As palavras também seguem sendo surrupiadas: a defesa da vida contra a morte, algo tão caro às lutas feministas contra a violência de gênero, tem mudado o sinal, dado que os grupos neoconservadores, a partir de agendas regionais, se colocam como “pró-vida”, com um claro inimigo comum: tudo aquilo que se diferencie da família patriarcal heteronormativa.