Em menos de duas semanas, a comunidade Guarani Kaiowá do tekoha Kurupi, próxima à cidade de Naviraí (MS), sofreu dois ataques por parte de funcionários da Fazenda Balneário Tejuí, sobreposta ao território ancestral.
De acordo com lideranças da comunidade ouvidas pelo Brasil de Fato, na madrugada da última segunda-feira (27), tratores operados por empregados da fazenda e acompanhados pela Polícia Militar (PM) destruíram barracos e a casa de reza, que além de seu valor espiritual, abrigava as reuniões dos indígenas.
Segundo as lideranças, que por segurança falaram em anonimato, o objetivo dos ataques é retirá-los do local e preparar a terra para plantio de commodities por parte do arrendatário do fazendeiro Miguel Alexandre.
“Nossa situação aí, ó”, mostra, em vídeo, uma mulher Guarani Kaiowá depois da destruição. As imagens evidenciam as marcas de grade de trator na terra. “Derrubaram a casinha, ó o xiru [altar sagrado] ali, a casa de reza derrubou. Não limparam nada, só vieram para estragar. E ficaram atirando aqui ainda”, denuncia. “Esses invasores…”, lamenta um homem ao lado dela.
Os Guarani Kaiowá denunciam ainda que os tratores estão avançando sobre uma Área de Preservação Permanente (APP), mata protegida pelos indígenas e de onde os anciões extraem plantas medicinais.
Comunidade aguarda demarcação acampada há 20 anos
A retomada do tekoha (“lugar onde se é”, em guarani) Kurupi aconteceu no início dos anos 2000 quando, cansados de viver confinados na reserva de Caarapó, um grupo Guarani e Kaiowá retornou para parte do território de onde seus antepassados foram expulsos na década de 1940.
Ali a comunidade de cerca de 40 famílias vive em condições precárias em um acampamento nas margens da BR-163. “Por décadas, Kurupi ocupou um espaço muito diminuto e, depois, começaram a fazer pequenas retomadas, avançar o território de acampamento, buscando sobrevivência: áreas para plantio, acesso à água e coisas básicas de vida”, explica Matias Hampel, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) do MS.
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Em nota, o Ministério Público Federal (MPF) afirma que recebeu o relatório de identificação da área pela Funai em outubro de 2011, mas a Funai considerou que era preciso fazer uma complementação do estudo, com ida a campo. Passados 12 anos, isso ainda não aconteceu.
O MPF, junto com as defensorias públicas do Mato Grosso do Sul e da União afirmam que a demora da finalização do processo pela Funai acontece “sem justificativa plausível”, aumentando a “intensidade dos conflitos que ocorrem no local”.
Enquanto espera a demarcação do território, dentro do qual está a fazenda que carrega vestígio de estar em área indígena até no nome, os Guarani Kaiowá vivem sistemática violência. “Desde que passaram a acampar ali, eles vêm sofrendo agressões pesadas da Fazenda Tejuí. Tiveram o acampamento três vezes queimado, inclusive com crianças no meio, foi bem difícil”, ilustra Hampel.
Tiros e helicóptero da PM
Na tarde da última quinta-feira (16), houve outra investida de funcionários da fazenda com tratores – de novo com escolta da PM. Os veículos foram até os limites do acampamento Kurupi e, quando a comunidade Kaiowá se juntou, recuaram de volta para a sede da Fazenda Balneário Tujuí.
A liderança indígena ouvida pela reportagem conta que, em seguida, os indígenas foram atrás, no intuito de “conversar para impedir que machucassem a mata da comunidade”. E que foram recebidos com disparos de armas de fogo.
“Fomos atacados pela PM, que estava com duas viaturas. Eles inclusive ameaçaram a minha pessoa”, relata. Um helicóptero da PM sobrevoou a área. Os indígenas, então, voltaram ao acampamento.
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Procurada, a Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública do Mato Grosso do Sul (Sejusp) informa que a PM foi “acionada para averiguar uma denúncia de que indígenas estariam impedindo o trabalho em uma área de plantio na Fazenda Balneário Tejuí”. Que os policiais foram para “evitar possíveis conflitos” e que “não houve nenhum tipo de confronto”.
Quanto ao helicóptero, a Sejusp afirmou que a aeronave estava em operação junto ao Departamento de Operações de Fronteira (DOF) em outra ação, e que foi até o local para “fazer um reconhecimento de área”.
Para uma das lideranças de Kurupi, policiais militares no estado vêm cumprindo o papel de “pistoleiros legalizados”: “são pagos pelos fazendeiros”.
Polícia a serviço de proprietários rurais
Além deste episódio, recentemente houve outros dois envolvendo retomadas de território feitas pelo povo Guarani Kaiowá e violência policial em defesa do interesse de fazendeiros no Mato Grosso do Sul.
Um aconteceu no último 3 de março, depois que indígenas retomaram a Terra Indígena (TI) Laranjeira Nhanderu, sobreposta à Fazenda Inho, de propriedade de Raul das Neves, presidente do PT na cidade de Rio Brilhante (MS). Sem ordem judicial, a PM atacou os Kaiowá com bombas e balas de borracha e prendeu três indígenas, soltos no dia seguinte.
O outro, conhecido como massacre de Guapo’y, aconteceu em Amambai (MS) em junho do ano passado, no tekoha Gwapo’y Mi Tujury, que está no nome da Fazenda Borda da Mata da empresa VT Brasil Administração, da família Torelli. A PM invadiu a área, inclusive com helicóptero, assassinando o indígena Vitor Fernandes e ferindo gravemente 15 pessoas.
Edição: Nicolau Soares