O músico Marco Antonio de Figueiredo Luz, conhecido como Fughetti Luz, referência do rock gaúcho, morreu nesta sexta-feira (14), aos 76 anos, em Porto Alegre. Autor de clássicos como Campo Minado e Nosso Lado Animal, ele deixa uma filha e uma neta. A causa da morte não foi informada.
Na página oficial do músico, no Facebook, um texto foi publicado lamentado a morte. “Hoje é um triste dia para o Rock nacional, para o Rock Gaúcho, para o Rock da América Latina, para o Rock Mundial, perdi hoje um dos mais queridos e velho amigo, 14/04/2023, às 4h da manhã, partiu deste plano Fughetti Luz aos 76 anos de idade. Natural de São Francisco de Paula, este serrano fez a história do rock gaúcho a partir do IAPI em Porto Alegre e este rock sensacional, com letras fantásticas, rodou o planeta”. O velório será neste sábado (15), às 10h, no Crematório Saint Hilaire, em Viamão, e a cerimônia de despedida às 14h.
Amigo do músico, o jornalista Juarez Fonseca liberou ao Brasil de Fato RS uma entrevista realizada em 2015. “Se foi o meu querido amigo, o mais emblemático nome do rock gaúcho. Ele me parecia imortal, tá doendo bastante”, escreveu Juarez
Abaixo a entrevista completa
Sem falar com a imprensa desde o lançamento do segundo disco solo, em 2002, ele vestiu uma roupa bem colorida para me receber na casa em que vive sozinho, em Tapes, pertinho da Lagoa dos Patos. Haviam me dito que se tornara turrão, evitando contatos até com velhos amigos. O que encontrei, em uma tarde ensolarada, foi um sujeito muito afetuoso, alegre, não poupando gargalhadas, com ótima memória, uma certa aura mística e querendo falar. Está especialmente revigorado graças ao novo álbum que acaba de gravar. Depois de conversamos longamente no quintal da casa, à sombra de árvores frutíferas, me convidou para saborear o “café colonial” que pedira a Úrsula, sua cuidadora, preparar para mim. Nos conhecemos há muito tempo, nunca tivemos a proximidade fraterna daquela tarde. Com carinho, sua filha Shanti o chama de “meu velho bruxo”.
“Pra tudo que termina há um novo recomeço”
Como vieste parar em Tapes?
Vim pra cá em 2000. Antes, morei durante 20 anos numa casa no Jardim Sabará, em Porto Alegre, para onde me mudei depois que terminou o Bixo da Seda. Aí fiquei liberado pra compor mais, foi ótimo. Banda é legal, mas é cabide, um pendurado no outro. E lá pintou uma cachoeira de rock and roll na minha cabeça, eu não parava mais de escrever. Estou falando de 1980 em diante. Escrevi o Campo Minado em 84, por exemplo. E comecei a botar na roda, porque música não é pra engavetar, é de todos. Rock and roll é a única coisa que eu sei fazer mesmo, para a qual me dediquei. Montei algumas bandas, fiz o Guerrilheiro Anti-nuclear, levei pra roda também a Bandaliera, onde estavam o Duca Leindecker e o Marcinho Ramos, passei minhas músicas pra eles.
Produção em alta escala…
Sim, sim. Mas um dia comecei a chorar, chorar, e não sabia por que, parecia que tinham batido no meu ombro e dito “calma aí, agora tu tem que dar um tempo, tu não tem nada pra dizer, fica quieto um pouco”. Mas como é que eu vou aprender a ficar quieto se sou um alto-falante, um cantor? Esse é o meu natural desde criança. Sempre música e música, minha cabeça funciona como uma orquestra, ouço tudo, para o novo disco fiz arranjos para flautas, para violoncelo. Mas só toco cordas vocais, que é o instrumento mais sagrado que existe. Ok, toco o pandeiro meia-lua, agogô e chocalho, isso é comigo. Eu sou negão, era guri e andava nas escolas de samba, minha mãe tinha que me buscar…
E Tapes?
Minha mulher, a amada Zefa, Zefa Luz, Janete Petry Luz, nessa época morava um pouco aqui em Tapes e um pouco no Sabará. Aqui, cuidava da mãe doente, já viúva, que viveu sempre nesta casa. A mãe dela partiu, e quando me deu esse silêncio, em 2000, vim ficar com ela aqui, também para aprender sobre o silêncio. Eu não sabia ouvir o silêncio. Com a morte dela fiquei cuidando da casa – cuido para minha filha Shanti e minha neta Bibiana, que são as luzes da minha vida. Neste momento a casa é minha, embora na verdade minha casa seja a minha matéria, estou de passagem pelo planeta, nós todos estamos. Então, estou zelando pelo que a família dela construiu. Não estou sozinho porque tem a Úrsula que me salva, meu anjinho da guarda. Está comigo há muito tempo, cuidou da Zefa…
De que morreu a Zefa?
Morreu em 2012, tinha diabetes e teve um câncer também. Foi pro hospital fazer exames, dei um beijinho nela, fiquei limpando a casa, plantando florzinha no jardim, esperando ela voltar e ela não voltou mais. Quando eu vi estava debulhado em lágrimas. Fiquei partido pela metade, me deixou uma dor, uma solidão… Falo com ela todos os dias, vou amá-la até o infinito. Mas o que fazer? Tive que continuar a caminhar, pensar em minha filha e em minha neta, que vivem em Amsterdam. Elas passaram uns dias aqui comigo agora em julho e agosto. Bibiana é um encanto de garota, tem 11 anos, me saca pra caramba, toca piano muito bem, fala quatro idiomas, é inteligentíssima. E Shanti foi o maior presente que eu a Zefa ganhamos.
Qual tua rotina?
É eu e a Úrsula dando risada… quando eu não estou em lágrimas, há-há-há…, de tanta risada que eu dou. É ouvir som, ler, escrever, ver um pouco de televisão, conversar com a Úrsula, brincar com meu cachorrinho Lupi. Todas as noites escrevo alguma coisa. Aqui neste sofá, onde passo bastante tempo, fiz algumas das músicas que vão estar no disco novo que o Marcelo Truda está produzindo. Eu e o Truda temos uma ligação espiritual. Amo ele de paixão. Veio muitas vezes me visitar, ele e o Marcelo Guimarães, que também está no disco e é uma pessoa maravilhosa. Quando o Bixo da Seda se reúne para algum show, é o Guimarães quem me substitui, porque não posso mais ficar em pé no palco, não tenho mais força nas pernas.
Vamos voltar no tempo. O Liverpool foi um fenômeno localizado entre o fim dos anos 1960 e o início dos 70. Vocês tinham ideia de que aquilo poderia se tornar algo importante ou era apenas coisa de garotos?
No início claro que era uma coisa de garotos. Tocávamos sucessos do rock and roll em inglês. Um dia eu disse: nós não falamos inglês, nem sabemos o que estamos cantando… E comecei a fazer versões. Fiz uma para Mrs. Robinson, do Simon e Garfunkel, outras para músicas dos Stones. Depois, propus que nos lugares em que a gente tocava pra garotada dançar, a cada semana deveríamos levar uma música nova pra fazer um show, sem dança, no meio da festa. Começamos a cantar músicas do Gilberto Gil, do Caetano Veloso, entre outros, era a época da Tropicália. Começamos a quebrar o compasso e paravam de dançar para prestar atenção em nós, coisa mais linda.
É aí que surge a personalidade da banda?
Sim, e éramos dedicados, ensaiávamos muito. Ensaiei tanto na vida, que quando convidaram a mim e ao Marcinho Ramos para abrir o show do Deep Purple no Gigantinho, em 1991, eu disse pro Marcinho: vamos entrar no palco sem ensaio, tu na tua e eu na minha. Não podia ter bateria porque a bateria deles ocupava muito espaço. Assim que é bom de fazer rock and roll: de tarde nos avisaram, escolhemos cinco músicas e de noite estávamos no Gigantinho lotado. Eu entrei cantando com meu pandeirinho, o Marcinho com aquela maravilhosa guitarra, e mandamos ver. O Gigantinho veio abaixo.
Voltando ao Liverpool…
Pois é isso, quando pintou a chance de fazer o disco, só tínhamos músicas dos outros. E eu disse: vamos tentar fazer músicas nossas, nem que saia uma bosta, vamos tentar, é errando que se aprende. E fizemos três. Bá, meu chapa, de repente estávamos no Maracanãzinho lotado, no Festival Internacional da Canção, tocando Por Favor, Sucesso com o Carlinhos Hartlieb. Uma raia de responsa! Em seguida, estávamos gravando um disco e morando no Rio. Depois nos chamaram para participar do programa Som Livre Exportação, na TV Globo, ao lado da Elis, do Ivan Lins, do Simonal e outros. Viajamos pelo país todo, viemos com o programa a Porto Alegre, o Araújo Vianna lotado, foi lindo. E em 1972 o Liverpool acabou, por uma série de questões, entre elas a falta de grana. A banda fazia sucesso mas não ganhava dinheiro.
Como era a relação de vocês com a televisão?
Na Tupi o cara queria me filmar só da cintura pra cima. E eu avisei: olha aqui, vocês têm que filmar o corpo inteiro porque eu tive paralisia infantil, e isso é um incentivo pras pessoas que têm problema físico saírem de casa, não ficarem com complexo, terem força. Eu venci os meus complexos trabalhando minha cabeça, batalhando no meio da rua, entendeu? Então, eu gostaria que vocês me filmassem de corpo inteiro. Cara, eu sou assim desde pequeno, a perna é um presente que ganhei para atravessar o planeta. A pessoa é o que ela é. Eu comprava essas paradas…
E aí tu resolves dar um tempo…
Em 1973 eu e a Zefa casamos e fomos para a Europa. Ficamos um ano e dois meses como hippies, caminhando, vendo arte, shows quase todas as noites, vimos Yes, Genesis, King Crimson, The Who e muito mais. Estivemos em vários países, minha filha nasceu em Amsterdam nessa viagem. Londres é fenomenal, cidade de cultura e arte, som todos os dias, a gurizada tem onde trabalhar. Isso é o que eu queria pra Porto Alegre, temos que abrir as portas dos clubes pra gurizada nova poder se expressar, fazer shows, não ficar na esquina de bobeira. No meu tempo, eu pegava os guris que estavam na esquina e botava de roadie, de iluminador… eles não sabiam nada mas íamos ensinando. Muitos viraram profissionais. Eu gostaria que em Porto Alegre abrissem as portas não só os bares, mas também os clubes. Quem tem nome toca, mas e os outros? Na época do Liverpool todos os clubes tinham as portas abertas.
Depois da Europa vem o Bixo da Seda…
Voltei decidido a continuar na estrada do rock and roll, criei umas bandas, como a Laranja Mecânica, o Bobo da Corte, a Trilha do Sol. A Laranja Mecânica teve existência rápida, fomos presos no primeiro show. A polícia invadiu o Teatro 1, que ficava na Ramiro, prendeu mais de 60 pessoas, entrou no camarim e nos levou para o Dops, onde fomos interrogados. Mais tarde o Zé Vicente Brizola, que passara pelo Bobo, montou o Bixo da Seda com o Mimi Lessa, o Peko Santana, o Edinho Espíndola (todos ex-Liverpool) e o Cláudio Vera Cruz. Não demorou muito o Zé Vicente saiu e o Mimi, minha véia querida, me chamou pra dentro, “vem Luzinha”, que é como ele me chama, “volta, por favor”.
A parceria com Mimi era uma coisa meio atávica…
Mimi é meu guitarrista xodó, ao lado do Marcinho Ramos, do Marcelo Truda, do Duca Leindecker e do Luiz Carlini. Sou um sortudo, estão sempre comigo, menos o Marcinho, que morreu cedo demais, em 1994. O Mimi constituiu família no Rio, o Marcos também, então ficaram nessa de Rio-Porto Alegre. O Bixo teve em pouco tempo uma existência intensa, principalmente em São Paulo e Rio. Tocamos muito também em Belo Horizonte. Só que o Rio não é lugar de rock and roll, lá é música brasileira, samba… O Bixo abriu muitas portas, foi uma banda importante, não estávamos para brincadeira, trabalhávamos muito o nosso som. Mesmo assim tivemos que nos dispersar em 1980…
Por quê?
Mesmo com o disco, lançado em 1976, não conseguíamos viver de música. Daí que os guris foram acompanhar as Frenéticas, que faziam muito sucesso. Queriam que eu ficasse no Rio e eu disse não-não-não, vou cair pro lugar em que eu possa fazer rock and roll mesmo, e voltei pro meu Rio Grande querido, pra minha cidade. Nunca esqueço do IAPI, onde me criei, maravilha de infância, jogando bolinha de gude, brincando de pião soltando pipa, coisa que os guris não fazem mais hoje. Tomara que voltem a brincar, porque só estão olhando pra mão, e o que tem na mão? Um computadorzinho! Mas vem cá, ninguém mais olha no olho de ninguém, tchê! Então, voltei pra continuar compondo, sou um compositor.
Tu acompanhas a movimentação do rock de uma maneira geral? Nas achas que o rock está numa encruzilhada?
Acompanho sempre, presto atenção, tô sempre catando coisas novas na TV a cabo. Fora os discos. E se o rock está numa encruzilhada é porque tem um caminho novo surgindo, pra tudo que termina há um novo recomeço. Vou lutar sempre, sem essa de se mixar, que o rock tá isso e tá aquilo. Se as portas estiverem fechadas eu dou pontapé e abro, e se não tiver pé eu dou soco, e a juventude vai seguir caminhando e o rock and roll vai continuar vivo. E é isso aí, meu guri.
Qual seria o caminho?
Antes de pensar nisso, vou botar esse novo disco na roda, o terceiro, de presente para todos. Vou abrir mais uma porta. Depois do primeiro disco, em 1998 ganhei o título de Cidadão de Porto Alegre, coisa rara, pois o cara que fazia rock and roll na cidade e era preso e tratado como vagabundo, tem um título assinado pelo prefeito Raul Pont, “por relevantes serviços prestados à comunidade”. Maior honra.
Te interessas por política?
Claro, tenho várias ideias para o Brasil. Por exemplo: se a gente vive numa democracia, por que somos obrigados a votar em vez de sermos livres para votar? Se não votamos não nos dão passaporte, não nos dão documentos. Acho que os estados têm que ser independentes, com leis próprias, o país será melhor no dia em que isso acontecer. O povo não aguenta mais o atual sistema, está velho e arcaico. Tem na bandeira a frase “ordem e progresso”, mas o país está em desordem e regresso. E temos que ver a origem do dinheiro dos candidatos, os caras têm que ter ficha limpa desde o início. E não pode ter religiosos na política, essa panelinha tem que acabar. Sei que são pensamentos utópicos, mas é que eu acho.
E o que mais?
Quero energia limpa, eólica e solar, para pararmos um pouco de agredir a natureza. Quero o país todo ligado por trens. O sistema prisional também precisa mudar, penso que os presos devem plantar sua própria comida, e ser separados pelo tipo de crimes que cometeram. Deveria haver professores para dar aulas nas cadeias. E agora, pelo contrário, os professores estão apanhando da polícia. Vi na tevê professores sangrando em Curitiba e aquilo me cortou o coração. Pensei em minha mãe, que era professora. E ainda ganham uma miséria de salário. Sem professores bem tratados, o que será de nós?
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Katia Marko