O governo Lula revogou, em 200 dias de governo, 97 atos do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) considerados nocivos à democracia e ao sistema de garantia de direitos. O número representa 46,7% de um total de 220 normas que foram identificadas e analisadas ano passado por pesquisadores da Fundação Lauro Campos e Marielle Franco, entidade de estudos ligada ao PSOL, e que, na avaliação política do partido, deveriam ser invalidadas pela atual gestão. Os números constam em levantamento publicado pela instituição.
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Realizado em parceria com a Fundação Rosa de Luxemburgo, da Alemanha, o levantamento envolveu 25 pesquisadores e analisou um total de 20 mil normas infralegais de Bolsonaro, a partir das quais foi feito o filtro que levou aos 220 atos que o PSOL defende que sejam revogados. Todas essas medidas identificadas como prejudiciais pelo grupo foram incluídas em documento entregue ao então governo de transição no final do ano passado. Entre 2022 e 2023, dez deles caíram por decisão judicial ou por motivos alheios, enquanto 210 permaneceram no alvo da fundação.
“A gente sabia que não seria de uma hora para outra, que haveria um processo técnico de estudo dessas medidas, mas a gente fez questão de formalizar na época a entrega política desse relatório”, explicou ao Brasil de Fato o coordenador da pesquisa, Josué Medeiros, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que está à frente do Observatório Político e Eleitoral (Opel), do Núcleo de Estudos Sobre a Democracia Brasileira (Nudeb) e do Núcleo de Análises, Pesquisas e Estudos da Fundação Lauro Campos e Marielle Franco.
Questionado se o percentual de 46,7% de atos revogados em 200 dias parece um ritmo ágil ou ainda vagaroso, o pesquisador pondera que a análise dos números precisa ser feita à luz do contexto sociopolítico nacional, considerando especialmente os novos fatos surgidos no primeiro semestre do ano. “Quando a gente entregou o relatório, esperava um ritmo mais acelerado, mas teve também o dia 8 de janeiro, a tentativa de golpe, [a crise humanitária gerada pelo] genocídio Yanomami. Quando o governo assumiu, a sociedade e eles perceberam que o problema era muito mais grave do que se esperava. Então, diante dessa situação, a gente considera o ritmo bom”, pontua.
Dados
Ao quantificar e segmentar os atos anulados na primeira fase do governo, o grupo identificou que a maior fatia deles está relacionada à segurança pública, que contabiliza 21 revogações. Ao todo, o mapeamento localizou 45 normas consideradas prejudiciais à democracia nessa área. É o caso dos decretos de Bolsonaro que facilitavam o acesso a armas e munições, os quais foram invalidados pelo presidente Lula já no primeiro dia de mandato, em janeiro.
Na sequência, o destaque é para a área de meio ambiente: foram nove revogações de um conjunto de 16 demandas anteriormente apresentadas. Também na largada do governo, Lula recriou a Comissão Interministerial Permanente de Prevenção e Controle do Desmatamento, que executa o Plano de Ação para a Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm). À lista se somam ainda medidas como a retomada do Fundo Amazônia e a revogação de atos que anistiaram multas ambientais, tema em que a gestão Bolsonaro se destacou por conta do caráter permissivo diante das infrações.
Os eixos temáticos de Educação e Economia, Trabalho e Renda dividem o terceiro lugar em termos de número de medidas revogadas. Foram sete ao todo em cada área, havendo, na primeira, uma demanda de 12 normas a serem anuladas e, na segunda, um total de 20 atos considerados prejudiciais ao sistema de garantia de direitos. No caso da área educacional, a diretoria do Ministério da Educação (MEC) responsável pelo programa de escolas cívico-militares foi extinta ainda no começo do ano. Em julho, a gestão petista cessou os investimentos financeiros destinados a esse tipo de iniciativa, medida que também é contabilizada na pesquisa.
Já no eixo Economia, Trabalho e Renda, um dos exemplos mais emblemáticos citados pelos pesquisadores é a revogação do Teto de Gastos, já defendida pela gestão Lula desde o início do mandato. A Emenda Constitucional 95, que instituiu o teto, no entanto, segue vigente. O governo aguarda a aprovação final do novo arcabouço fiscal no Congresso Nacional e sua consequente sanção para que a medida possa substituir o ajuste fiscal implementado originalmente pelo governo Temer e mantido por Bolsonaro nos quatro anos de governo.
“A gente colocou na lista por considerar que a decisão política de revogar já foi tomada e que o texto já foi aprovado na Câmara, no Senado e voltou pra Câmara apenas para cumprir essa última fase do rito. Ele deve ser aprovado nos próximos 10 ou 15 dias, então, já entrou na pesquisa”, afirma Josué Medeiros. Ainda nesse eixo, os pesquisadores citam também a retomada das mesas de negociação com servidores públicos, canal que havia sido extinto nos últimos sete anos. Como consequência, a gestão Lula concedeu 9% de recomposição salarial para o funcionalismo federal.
Também é destaque a revogação dos estudos de privatização de sete estatais feitos logo no início da gestão. Entre as empresas, estão Correios, Serpro, Dataprev e a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). Alguns dos pontos observados pelos pesquisadores na análise do levantamento incluem o que o grupo chama de “retomada do orçamento público” e o resgate “dos sentidos públicos do Estado”.
“O Bolsonaro, além de autoritário, de defender a ditadura e a violência como método de resolução de conflitos, é também ultraliberal. Então, reconstruir os sentidos públicos do Estado significa derrotar esse ultraliberalismo que ele tentou implementar. É ter de novo negociação com servidor público, mas também orçamento público para áreas estruturais, como habitação. Quando você faz algo pro povo mais pobre, você está colocando pra população que o Estado é público, e não apenas de uma minoria de privilegiados. Isso é muito importante.”
Avanço
Josué Medeiros pontua ainda que, para que o país avance no sentido de revogar outras medidas do governo Bolsonaro ainda não revistas pela atual gestão, é preciso ampla mobilização da sociedade civil. “Houve mobilizações importantes, como as que aconteceram depois do 8 de janeiro, mas a gente precisa de mais. Acho também que a sociedade civil estava muito cansada [da luta dos anos anteriores], então, a retomada da mobilização também não é de uma hora pra outra. Tem um processo de reconstrução das próprias dinâmicas de mobilização, mas, sem dúvida, a pressão precisa continuar.”
Edição: Thalita Pires