Após três anos de rompimento diplomático, o Brasil retomou relações com a Venezuela e encerrou uma política hostil em relação ao país vizinho. Por decisão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o governo brasileiro voltou a reconhecer o mandato de Nicolás Maduro, normalizou o status dos diplomatas venezuelanos no Brasil e enviou um encarregado de negócios a Caracas para reabrir a embaixada brasileira na capital venezuelana.
O diplomata Flávio Macieira chegou ao país ainda em janeiro para chefiar a missão brasileira e reativar a principal sede diplomática do Brasil na Venezuela. Hoje, três meses após sua nomeação, ele afirma que a retomada de relações ainda está “em uma fase preliminar”, mas que as expectativas “são as melhores possíveis”.
::O que está acontecendo na Venezuela::
Macieira recebeu a reportagem do Brasil de Fato na embaixada do Brasil em Caracas nesta segunda-feira (27) para falar sobre os avanços do restabelecimento de relações, os desafios do processo de reabertura das sedes fechadas pelo governo de Jair Bolsonaro (PL) e as perspectivas para o futuro.
Confira os principais trechos da entrevista:
Brasil de Fato: Em qual estado os edifícios da embaixada e dos consulados brasileiros na Venezuela foram encontrados?
Flávio Macieira: Havia uma diferença de organização dos espaços das representações brasileiras. Aqui [em Caracas], há dois imóveis próprios brasileiros: esse aqui, da chancelaria, e a residência oficial do embaixador. Esses imóveis estavam muito bem preservados. Claro, na hora da saída foi tudo um pouco improvisado e foi muito difícil dar um jeito de interromper o trabalho de uma hora para a outra, mas essa parte foi bem coberta porque veio uma equipe do Brasil e foi contratada uma empresa que cuidou muito bem dos imóveis.
Então a gente não parte do zero, a gente parte de uma estrutura que existe, é só recolocá-la em funcionamento, mas tem vários problemas. Todos os funcionários foram cessados e nós estamos fazendo novos processos seletivos para recompor o quadro de funcionários da embaixada, porque uma embaixada não funciona corretamente sem funcionários locais. Só com o staff que vem do Brasil nós ficamos sem janela suficiente para o governo local, para a sociedade venezuelana. Então a gente precisa ter nosso corpo de funcionários locais. Já os outros imóveis eram alugados e eles foram devolvidos.
O consulado-geral em Caracas era muito bem instalado, um prédio ótimo que eu visitei. O espaço foi devolvido, não existe mais, está vago até hoje. Eu estou aqui tentando equacionar o que seria melhor para o serviço brasileiro, mas uma boa solução seria o Brasil reabrir esse consulado no mesmo lugar de antes. Ele estaria muito bem instalado e teríamos a presença institucional brasileira em Caracas muito mais completa.
Os outros são muito importantes também, os vice-consulados [em Puerto Ayacucho e em Santa Elena de Uairén] e o consulado em Ciudad Guayana, mas eles também estavam em espaços alugados que foram descontinuados. Inclusive os arquivos dessas sedes, que são arquivos sensíveis, com informações pessoais, ficaram armazenados aqui em Caracas, por segurança. Isso tem que ser equacionado, mas não pode ser feito ao mesmo tempo, porque todo esse esforço que está sendo feito aqui [em Caracas] terá que ser reproduzidos em cada uma das sedes.
Quanto foi gasto nessa operação de fechamento de sedes, transferência de arquivos, remoção de pessoal e preservação do espaço físico da embaixada durante o rompimento de relações?
Eu não tenho essa estimativa de gasto, até porque não é da nossa época. Posso dizer que era um gasto necessário para evitar um dano ainda maior à continuidade futura da presença diplomática e consular brasileira na Venezuela. O gasto com securitização dos imóveis do Brasil, ao longo de três anos, é certamente alto, no acumulado, mas não é um volume acima do que seria o normal para manutenção dos postos se eles estivessem abertos. Na verdade, é inferior. Foi um gasto lamentável, mas por outro lado foi útil porque manteve nossos imóveis. Também não houve nenhum dano nas sedes. O engenheiro da empresa visitava os locais e não há nenhum registro de danos. É claro que uma casa parada por três ou quatro anos tem pequenas coisas que vão aparecendo com o uso, mas tudo está sendo corrigido. Nós estamos, na verdade, em uma fase preliminar ainda. Eu vim para reabrir a embaixada e voltei a Brasília para fazer um levantamento geral para a construção de uma agenda e de um levantamento de carências.
O que consta nessa primeira agenda? Quais são os temas prioritários?
Eu vou citar o embaixador Celso Amorim, nosso ex-ministro, que falou sobre o relacionamento entre Brasil e Venezuela, dizendo que a ideia é recompor um relacionamento como existiu no passado, que era um relacionamento muito completo e complexo. Porque havia comércio, investimento, venda de serviços, cooperação de empresas, cooperação técnica. Então a ideia é recompor tudo isso, mas de uma maneira planejada, cautelosa e progressiva.
Ninguém dará passos exagerados ou precipitados, mas a ideia é reativar o relacionamento da maneira que for possível, porque é uma coisa mutuamente benéfica. Hoje em dia já existem exportadores brasileiros abastecendo parte do mercado daqui e isso é um aporte muito importante para que eles baixem os preços e dominem essa inflação que tem criado dificuldades para a economia da Venezuela.
Eu acho que o Brasil é uma presença muito importante para a Venezuela, e a Venezuela para nós, porque é um país vizinho com quem temos uma partilha histórica. Toda a América do Sul possui uma história entrelaçada de países soberanos que compartilham a mesma origem. Então a ideia é essa, recompor um bom relacionamento. Você sabe que a Venezuela chegou a ser, em certo momento pontual, o segundo destino de exportações do Brasil nas Américas, já estava ultrapassando a Argentina. Não sei se a gente chega lá de novo, mas isso mostra a importância do mercado venezuelano para o Brasil.
Entre 2000 e 2021, o Brasil acumulou um superávit na balança comercial com a Venezuela de mais de US$ 41 bilhões. Com destaque para o período entre 2005 e 2012, que alcançou níveis históricos. Nesse período, o Brasil também instalou em Caracas escritórios e representações de várias entidades brasileiras, como uma missão do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), um escritório da Caixa Econômica, uma representação da Embrapa entre outros. Como o senhor avalia essa prática? Existe a ideia de repetir alguma dessas iniciativas?
Isso precisa ser pensado pelos órgãos. Não há nenhuma decisão firme de nenhum deles, mas se depender da embaixada isso voltaria em algum momento, porque a ideia é recompor um relacionamento bem completo. É claro que o mundo mudou, as condições mudaram e é preciso ver se é cabível, se há realmente o que encaixar na agenda, mas seria ótimo ter o IPEA de volta, ter a Embrapa de volta, ter a ABDI [Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial] de volta. Também seria ótimo ter o Brasil bem presente no CAF [Banco de Desenvolvimento da América Latina], que tem sede aqui, porque o Brasil é observador do Pacto Andino e membro do CAF. Tudo isso requer a atenção da embaixada, sem nenhuma dúvida, mas eu não sei se isso vai ser acompanhado pelo staff que está aqui, porque nesse momento a equipe é toda provisória, o máximo de tempo é de três ou quatro meses. Depois virão pessoas em definitivo.
Quando?
O Itamaraty funciona por mecanismo, que é a movimentação mundial de funcionários. Já está ocorrendo uma agora e já estão abertas vagas para a Venezuela. Então virão diplomatas e servidores de outros quadros do serviço exterior brasileiro, só não sabemos quem virá nem quantos virão. Eu espero que muitos, porque Caracas é um grande posto diplomático. Esse processo só vai se concluir por volta de julho, porque é um processo longo. Nas embaixadas que já estão abertas, esse fluxo não muda muito as rotinas, mas aqui sim porque partimos de uma base esvaziada pelas circunstâncias e nossa urgência é muito grande. Por isso é que nós estamos trazendo pessoas em missões provisórias e todas elas são experientes nesse tipo de trabalho de reabertura e abertura de postos.
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Como foram os primeiros contatos com o governo venezuelano? Quais temas foram abordados?
Foram os melhores possíveis. Eu estive aqui primeiramente por apenas dez dias, então eu tive contato com o vice-ministro de Relações Exteriores [Rander Peña] e com a chefe de protocolo da Chancelaria venezuelana. Naquele momento, estava prevista, no curto prazo, uma reunião dos dois presidentes [Lula e Maduro]. Por causa disso, o contato político já estava atendido, já que aconteceria uma reunião máxima em breve. Infelizmente, a reunião acabou não acontecendo.
A reunião entre os presidentes seria aqui em Caracas?
Não. Na Argentina, na cúpula da Celac. Mas isso não ocorreu. Então eu fui a Brasília para trabalhar nessa preparação de agenda e voltei, agora sim, para ficar mais tempo e aprofundar, da maneira que for possível, a programação aqui, abrindo frentes de contato. A receptividade do governo é excelente.
Há alguns dias, o chanceler Mauro Vieira se reuniu com o chanceler venezuelano Yván Gil e ambos conversaram sobre visitas bilaterais de alto nível. Está prevista a vinda do presidente Lula à Venezuela nos próximos dias ou meses?
Está previsto que em algum momento isso aconteça. Possivelmente até a ida do presidente Nicolás Maduro ao Brasil. E também uma vista do chanceler Mauro Vieira aqui na Venezuela. Mas não temos previsão de data. Não sabemos quando aconteceriam. Toda a expectativa é de que se realizem e para a embaixada é o melhor que poderia acontecer, para estimular o trabalho, para acelerar a agenda. Tudo ainda está meio em aberto, mas a perspectiva é positiva para diversificar cada vez mais o relacionamento, com a meta de voltarmos a ter a mesma intensidade de interação que já houve no passado e que seja uma coisa estável.
Apesar de toda a disposição em recuperar o nível das relações, hoje existe um elemento que não existia anteriormente: as sanções dos Estados Unidos contra a Venezuela. Hoje, uma empresa ou país que fizer negócios com o governo venezuelano ou com a PDVSA, por exemplo, corre sérios riscos de ter seus pagamentos bloqueados, mercadorias apreendidas e até aeronaves e embarcações detidas. Como a embaixada brasileira encara essas dificuldades impostas pelo bloqueio?
Eu acho que não podemos voltar ao passado, mas podemos elevar a intensidade do relacionamento, se possível, até o nível que já existiu no passado. Então seria uma “volta para o futuro”. A agenda será nova, é o que eu digo. O mundo mudou, as sanções são um exemplo disso. Só que nós estamos em uma fase em que a possibilidade de eliminação de sanções está evoluindo, há conversas entre a Venezuela e os Estados Unidos e nós estamos observando isso.
Naturalmente, nós vamos trabalhar segundo as condições possíveis. Ninguém pode ignorar as sanções. As empresas sabem disso e trabalham dentro da legalidade, da forma que é possível. Agora, as sanções não impedem investimentos, não impedem o comércio em setores que nos interessam muito como os de alimentos e medicamentos, muito importantes para evitar que a população sofra diretamente com as sanções.
Nós esperamos que esse quadro evolua – e vai evoluir em algum momento. Não é nem uma esperança, é uma certeza, porque os países [EUA e Venezuela] não viverão para sempre nesse divórcio, até porque a Venezuela dispõe da maior reserva de petróleo do mundo. Nós estamos aqui de uma maneira neutra, pensando na agenda brasileira-venezuelana. Nossa posição é construtiva, então em tudo o que nós pudermos contribuir para uma normalização da situação nós vamos contribuir.
O presidente Lula já afirmou inclusive que o Brasil poderia mediar as negociações entre governo e oposição venezuelana. Isso está na agenda da embaixada também?
Isso é uma questão a ser decidida entre os governos. Tudo o que a embaixada for solicitada a fazer ela fará. O que eu posso dizer como observador é que o processo de diálogo está sendo muito bem conduzido pelos noruegueses e mexicanos [países mediadores] e nós estamos à disposição em tudo que pudermos contribuir, mas com a concordância de todos os envolvidos. O Brasil sempre foi uma presença democrática e disponível para todos os seus vizinhos e amigos. Temos muitos exemplos disso ao longo da história. O aporte brasileiro é sempre nessa linha, de democracia, de resolução pacífica dos conflitos, de diálogo. Essa é a mensagem do presidente e foi a mensagem que o embaixador Celso Amorim trouxe para cá quando visitou a Venezuela. Essa é a tradição brasileira, nós nunca vamos nos desviar dessa tradição.
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Na relação bilateral, existem alguns pontos a serem resolvidos, como a dívida de US$ 682 milhões que a Venezuela tem com o BNDES. O presidente Lula já disse que o país vai pagar e que o rompimento de relações prejudicou muito a renegociação dessa dívida. A embaixada pode auxiliar nesse processo?
Isso é uma questão a ser decidida entre os operativos da área financeira. Do ponto de vista financeiro, a embaixada não tem uma interveniência muito grande. Claro que nós seremos uma correia de transmissão de tudo o que vier como instrução do Brasil e, nesse sentido, nós queremos ver essa questão equacionada da melhor maneira possível.
A verdade é a seguinte: para obter uma reativação do comércio e dos investimentos à altura do potencial existente, será preciso equacionar a questão da dívida em aberto – algo que não pareceria difícil de acontecer em prazo relativamente curto. Pessoalmente, eu sou inteiramente otimista, eu acho que isso vai acontecer a médio e curto prazo. É uma questão de conversar, porque antes a conversa tinha sido interrompida e não havia como abordar essa questão. Agora há, então é completamente diferente e isso vai se equacionar. Sem o equacionamento, a relação econômica não decola de novo. Isso tem que acontecer, é uma condição natural.
Para criar confiança no empresariado brasileiro?
Claro, claro. Eu acho que não estamos falando de números impagáveis, nada disso. É um horizonte mais ou menos pensável, considerando que a relação ficou interrompida por três anos. É algo que pode ser bem equacionado e será.
As intenções do governo Lula são de retomar as linhas de financiamento do BNDES para exportação de bens e serviços brasileiros. A Venezuela pode voltar a ser receptora de exportações brasileiras de alto valor agregado?
Toda nossa expectativa é essa, porque a pauta de exportação para a Venezuela tinha um atrativo para o Brasil. O Brasil sempre teve o objetivo de ser um país industrial e a Venezuela também o tem, o que é muito bom e muito justo. Só que são economias complementares e o que era interessante da pauta brasileira de exportação era que ela abrangia justamente produtos industrializados, coisa que não acontece, por exemplo, com a exportação brasileira para países desenvolvidos.
Já aconteceu no passado, mas há toda uma história de protecionismo, de choque de interesses. O Brasil já foi exportador de automóveis e até hoje os exporta para a Europa, mas já foi para os Estados Unidos também, já exportou uma série de produtos que, com o tempo, foram excluídos da pauta. Um caminho da reintrodução e, portanto, da nova produção no Brasil é justamente desenvolver a pauta com países que têm interesse em absorver esse tipo de produto [industrializado]. A Venezuela é um deles. A área do Mercosul é outra. São espaços onde o Brasil pode exportar produtos industrializados, que é o interesse de toda grande economia do mundo.
Então a Venezuela é importante nesse sentido, mas não só por isso, porque o comércio é de duas vias. O Brasil tem muito a importar também da Venezuela e esse comércio é a lição da globalização, é bom para os dois lados.
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O último governo no Brasil não apenas rompeu as relações com a Venezuela, mas reconheceu um “governo paralelo” e aceitou uma suposta autoridade diplomática de pessoas nomeadas por esse “governo paralelo” para assumir cargos consulares no Brasil, inclusive validando a emissão de documentos que não possuem validade jurídica legal. Essa postura pode, de alguma forma, atrapalhar os trabalhos da missão brasileira na Venezuela?
Isso não é da agenda da embaixada. É uma questão que requer estudo pelas repartições consulares do Itamaraty para ver se esses documentos serão válidos, analisar os atos que foram organizados com esse governo autoproclamado, que tipo de consequência pode gerar.
Isso foi opção do governo brasileiro anterior, e ele estava abonado por ter sido eleito, por ser o governo constituído. Não foi só o Brasil, foi toda uma gama de países que reconheceu o presidente alternativo. Mas essa fase terminou, então isso é passado. Nós não estamos mais falando em reconhecimento de um governo alternativo, mas sim de manter relações com o governo constituído em Caracas. Certamente haverá estudos para saber se atos assinados com o governo alternativo causariam algum problema e, se causar algum problema, será estudado e será considerado, do ponto de vista jurídico, qual tipo de validade têm.
Acho que o Brasil, nesse sentido, é um país de um amadurecimento jurídico muito alto. Tanto que estamos vendo isso diariamente com a atuação do Supremo Tribunal Federal, na atuação das instâncias judiciais brasileiras. A força e a técnica interpretativas são altamente desenvolvidas no Brasil, isso não será um problema, será analisado da melhor maneira. Enfim, não me consta que haja algum choque de interpretação nem nada de prejuízo para as relações que se estabeleceram agora por atos que possam ter sido assinados antes.
De certa maneira, há uma expectativa, a gente pode sentir isso, de toda a sociedade venezuelana de que as coisas se normalizem, inclusive em relação ao Brasil. Essa chegada do Brasil foi muito bem recebida, por todos os lados, porque ela beneficia tanto a economia, quanto o sistema social. Eu acho que estamos em um momento que é benéfico para os dois lados e a ideia é deixar esse passado relegado à história.
Edição: Thales Schmidt