No dia 10 de abril, durante a reunião ministerial de apresentação dos resultados dos 100 dias de seu governo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) dedicou um espaço em seu discurso para criticar o Carrefour.
“O Carrefour cometeu mais um crime de racismo. Mais um crime”, lamentou Lula. “Se eles querem fazer isso no país de origem deles (França), que façam, mas não permitiremos que eles ajam assim aqui”, avisou o presidente brasileiro.
Dia 7 de abril, três dias antes do discurso de Lula, em uma unidade da rede Atacadão, do Grupo Carrefour, em Curitiba (PR), a professora Isabel Oliveira, uma mulher negra, ficou apenas de calcinha e sutiã, após ser perseguida por seguranças da multinacional francesa nos corredores do mercado.
Em seu corpo, Oliveira escreveu a pergunta “sou uma ameaça?”. No vídeo, a professora explica a situação para a atendente do caixa do supermercado: “Quando eu vim vestida, havia um segurança atrás de mim. Eu voltei, agora nua, para levar a latinha de leite para a minha bebê e mostrar que não estou roubando nada”.
Leia também: Deputada paraense Lívia Duarte denuncia ofensas racistas e ameaças de morte
Apesar do vídeo de Oliveira ter sido noticiado nos principais sites do país, com uma importante circulação nas redes sociais, no dia seguinte, 8 de abril, o Carrefour voltou a protagonizar um caso de racismo.
Vinícius de Paula, marido de Fabiana Claudino, bicampeã olímpica de vôlei, afirma que estava em uma unidade do Carrefour, em Alphaville, bairro nobre de Barueri (SP), e foi impedido por funcionários de usar o caixa preferencial, que estaria vazio, segundo o empresário.
Logo em seguida, narrou Vinícius de Paula, que é negro, em vídeo divulgado em suas redes sociais, uma mulher branca, que não atendia os pré-requisitos para utilizar o caixa preferencial, teria utilizado o guichê sem ser incomodada pelos funcionários do Carrefour.
O advogado de Paula, Hélio Silva Júnior, anunciou que a multinacional francesa será processada por racismo. “O Carrefour é uma empresa que não aprende e não esquece nada. Uma empresa que mata negro, que humilha, que ultraja, que constrange. O que o Vinicius passou ontem é crime, está absolutamente traumatizado do ponto de vista emocional e psíquico. Pelo jeito, o Carrefour não implantou nenhum programa significativo, substantivo. Dessa vez, isso não vai passar impune.”
Três dias depois, em 11 de abril, Pedro Freire, que vive em Olinda (PE), alega que foi perseguido por seguranças do Atacadão. “Tive que abrir a bolsa e jogar tudo no chão, para eles verem que só sacolas que eu carregava na mochila. Tive minha dignidade atacada ali e a gerência só me pedia calma, no momento em que eu estava fragilizado”, afirmou o jovem negro em suas redes sociais. “Isso dói e é muito agressivo para a população negra, então nos respeitem”, finalizou.
:: Aos 63 anos, Brasília é a cidade mais segregada do mundo, aponta pesquisador ::
30 meses depois de Beto
Os três casos reacenderam o debate sobre o racismo no Carrefour, 30 meses após a o assassinato de João Alberto Silveira Freitas, conhecido como Beto Freitas, um homem negro de 40 anos que foi espancado em uma unidade do grupo francês, em Porto Alegre (RS), no dia 19 de novembro de 2020, véspera do Dia da Consciência Negra.
O episódio marcou a luta contra o racismo no país. No dia seguinte, 20 de novembro, manifestantes que participavam da 17ª Marcha da Consciência Negra de São Paulo destruíram uma unidade do Carrefour, na rua Pamplona, região central da capital paulista, em protesto contra o assassinato de Beto Freitas.
O assassinato no Carrefour ocorreu seis meses após o brutal homicídio de George Floyd, nos EUA, um homem negro de 46 anos, que morreu sufocado pelo joelho do policial Derek Chauvin, que espremeu seu pescoço, mantendo as mãos no bolso, enquanto ouvia a frase: “Eu não consigo respirar”.
Em ambos os casos, um homem negro morreu por asfixia após sofrer com a violência de agentes de forças de segurança. O homicídio de Floyd gerou manifestações em várias partes do mundo, inclusive o Brasil, contra a violência policial e o racismo.
Quando Beto Freitas foi assassinado, o Brasil viveu um processo similar, com uma sequência de manifestações em diversas cidades do país. Acuado, o Carrefour anunciou, no dia 25 de novembro de 2020, a formação do Comitê Externo sobre Diversidade e Inclusão, criado para assessorar a multinacional francesa em medidas de combate ao racismo na estrutura da empresa. Para tanto, o grupo convidou figuras públicas, todas negras, para trabalharem na estruturação das medidas.
Comitê da discórdia
Entre os integrantes do comitê estavam o atual ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, o empresário e fundador da Central Única das Favelas (Cufa), Celso Athayde, a historiadora Anna Karla Ferreira dos Santos, Maurício Pestana, diretor da revista Raça Brasil, entre outros.
Na época, a criação do grupo gerou críticas do movimento negro. “O Carrefour resolveu monetizar a vida interrompida tragicamente de João Alberto com a criação de um fundo de igualdade racial de valor irrisório ao lucro da empresa, e, por fim, buscará escamotear sua responsabilidade via comitê”, afirmou a Coalizão Negra por Direitos, em 26 de novembro de 2020.
Trinta meses depois, o Carrefour continua sendo palco de casos de racismo. Em nota enviada ao Brasil de Fato, a Coalizão Negra por Direitos voltou a atacar a criação do comitê de notáveis montado pelo grupo francês.
“A Coalizão Negra por Direitos se mantém crítica à criação do nomeado ‘Comitê Externo de Diversidade e Inclusão’, convocado pela empresa com o intuito demonstrar algum compromisso com a agenda racial, o que na verdade se caracterizou como uma estratégia de compliance empresarial, com a triste participação de organizações e lideranças negras a endossar a narrativa da empresa racista.”
Relembre: Movimento negro reage ao comitê do Carrefour: ‘Não há mediação com quem nos mata’
A historiadora Wania Sant’anna lembra que na época da criação do comitê houve uma divisão no movimento negro. “A Coalizão Negra por Direitos tomou sua posição, mas outras figuras aceitaram participar, como a Cufa e, infelizmente, o Silvio (Almeida).”
“O histórico de supermercados, shoppings centers e bancos é terrível. Não é possível que continue assim. O que eles estão fazendo? Essas grandes marcas precisam comprovar que seus negócios são seguros para atender a população negra em seus estabelecimentos. É uma experiência de consumo absolutamente insegura e violadora de direitos”, criticou a historiadora.
Ainda de acordo com Sant’anna, os casos recentes de racismo mostram que “as ações do comitê precisam ser, no mínimo, aprimoradas e monitoradas”. Para a Coalizão, no caso de reincidência em racismo, “é preciso que as sanções legais lhe sejam atribuídas com responsabilidade civil e criminal e com a suspensão de suas atividades em território brasileiro enquanto não seja apresentado um plano robusto indenizatório e de reparação à população negra brasileira”.
A Coalizão defende a “responsabilização civil e criminal da empresa Carrefour e não acordo de contenção; diálogo com a família e indenização apropriada pelo homicídio praticado na empresa; e reparação ao território e à comunidade pela ação racista e violenta da empresa”.
De acordo com o movimento, “nenhum desses três itens foi respeitado no acordo que se concretizou, o que a nosso ver, compromete o resultado de todo processo e corrobora para as violências desencadeadas pelo racismo que tirou a vida de Beto e gera precedentes perversos para tantas outras violências promovidas por empresas e pelo Estado contra as pessoas negras”.
No banco dos réus, somente trabalhadores
Dos seis acusados pela morte de Beto Freitas, cinco eram funcionários do Carrefour: Kleiton Santos, Magno Borges, Adriana Dutra, Giovane da Silva e Rafael Rezende. O sexto suspeito é Paulo da Silva, trabalhador do Grupo Vector, que fazia a segurança do supermercado.
O Carrefour escapou da Justiça em junho de 2021, quando firmou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) no valor de R$ 115 milhões com Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul (MPRS), o Ministério Público Federal (MPF), Ministério Público do Trabalho (MPT), Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul (DPE-RS), Defensoria Pública da União (DPU) e as entidades Educafro – Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes e Centro Santo Dias de Direitos Humanos.
Leia mais: Sete vezes em que o Carrefour atuou com descaso e violência
Parte do acordo prevê que a empresa não responderá judicialmente pelo crime e, em contrapartida, investiria em contratação de negros e negras para seu corpo de funcionários, além da contratação de bolsas de estudos para a juventude preta.
Segundo o portal Alma Preta, Milena Borges Alves e Stephanye Alves, viúva e enteada de João Alberto Freitas, receberam R$ 1,5 milhão e R$ 459.800 mil de indenização, respectivamente.
Em 2022, de acordo com o balanço apresentado pela própria marca, o Carrefour registrou um lucro líquido de 1,35 bilhão de euros, crescimento de 25,7% na comparação anual.
Outro lado
O Brasil de Fato procurou a Cufa e sua assessoria respondeu apenas que “nada tem a ver com esse comitê”. Procurado, através de sua assessoria pessoal e do Ministério dos Direitos Humanos, Silvio Almeida preferiu não se manifestar. Caso o faça, o texto será atualizado.
O Grupo Carrefour Brasil enviou uma nota ao Brasil de Fato onde informa que “no processo contínuo de evolução para que casos de racismo ou qualquer outro tipo de discriminação não ocorram em suas lojas ou qualquer das suas atividades, analisou seus protocolos internos e tomou a decisão de implementar as seguintes novas medidas:
- Fica interrompida a atividade de circulação dos funcionários fiscais de prevenção nas lojas da rede Atacadão. Ou seja, não há mais circulação destes profissionais de prevenção nos corredores. A medida foi implementada na última quarta-feira, 12, e é válida para todas as lojas da referida rede;
- Os profissionais que antes circulavam pelas lojas do Atacadão ficarão à disposição dos clientes em pontos fixos e pré-determinados, na frente do caixa ou em sala que possui o circuito fechado de televisão (CFTV). A função dos profissionais que ficam em pontos fixos ou à frente do caixa é ser ponto de apoio aos clientes, ou atuação em casos de urgência (clientes passando mal e acidente, por exemplo).
- Serão realizadas melhorias no processo de monitoramento de câmeras para manter um ambiente seguro para os clientes das redes do Grupo;
- O Grupo também realizará a revisão de treinamentos de suas equipes de loja em parceria com a Universidade Zumbi dos Palmares;
- A empresa promoverá a ampliação da visibilidade dos canais de denúncia.
O Grupo reitera seu compromisso com a luta contra o racismo, e informa que, nos últimos dois anos, implementou mais de 50 ações antirracistas. Ressalta ainda que, ao receber denúncias em suas lojas, a empresa imediatamente instaura investigação minuciosa e, a partir dos resultados da apuração, toma medidas rigorosas dentro de sua política de Tolerância Zero.”
Edição: Nicolau Soares