Após ser rebaixado com status de secretaria no Ministério da Cidadania no início do governo de Jair Bolsonaro (PL), em 2019, o Ministério dos Esportes foi recriado nos primeiros dias do novo governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). À frente da pasta desde então, a ex-jogadora de vôlei Ana Moser, de 54 anos, tem objetivos ambiciosos para universalizar o acesso da população às atividades físicas – uma prioridade da sua gestão.
Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato em seu gabinete na Esplanada dos Ministérios, a primeira mulher a assumir o ministério desde a sua criação, em 1995, expôs as “dificuldades burocráticas” que marcaram o início do trabalho, a tramitação de uma Nova Lei Geral do Esporte, projeto de lei que está no Congresso Nacional, e dos esforços em buscar soluções interministeriais para aumentar o alcance das iniciativas da pasta em todo território nacional. Leia a reportagem na íntegra:
Sua atuação à frente de projetos como a “Caravana do Esporte” e o IEE (Instituto Esporte e Educação) tem norteado as políticas do seu ministério nesses 100 primeiros dias? Quais os principais desafios até agora?
O desafio do ministério do Esporte é ampliar a prática e desenhar um caminho para chegar a uma escala de atividade física no esporte, porque no Brasil a gente tem números muito ruins. Em torno de 30% de pessoas ativas, um grande número de pessoas sedentárias.
Apesar do esporte ter muitas dimensões e, às vezes, o esporte de alto rendimento, aquele que passa na televisão, ter uma presença muito forte no imaginário das pessoas, o que a gente quer é que o esporte esteja presente na vida das pessoas, no dia a dia. E de todos os brasileiros. Ou um caminho para chegar a isso e quatro anos é um tempo curto para os desafios que são muito grandes. Essa é a prioridade do ministério.
A gente está desenvolvendo estratégias para isso. A principal é a Rede de Desenvolvimento do Esporte, que é para chegar nos territórios com um diagnóstico do esporte que existe naquela região, conectando as coisas que são feitas pela educação, pela saúde, pela assistência social, pela sociedade civil, por projetos de ONGs, como o Ensino, Esporte e Educação e outras tantas ONGs, inclusive muitas delas na Lei de Incentivo ao Esporte.
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Temos uma série de questões que acontecem nas cidades e territórios que precisam ser conectadas, fomentadas e organizadas de uma maneira de política pública para que a gente possa ter uma visão de avanço: quantos atendimentos nós temos hoje, onde estão sendo atendidas essas crianças, onde estão atendidos os idosos, que competições regionais a gente tem, qual é o caminho presente de acesso nesse território para os jovens e adultos fazerem atividades físicas e esporte.
Isso é uma visão nacional do esporte, que tem uma legislação que está sendo aprovada no Congresso que vai dar a orientação a essa política e que esse programa das redes do desenvolvimento do esporte vai estar levando para os territórios essa política nacional e essa prioridade nesses quatro anos do ministério.
Há demandas das federações, confederações e do Comitê Olímpico Brasileiro por mais verbas e espaço dentro do ministério? Como têm sido as disputas internas ao ministério?
Eu acho que nós vivemos nos últimos 10, 15 anos um desenvolvimento muito grande desse sistema de COB, confederações, federações e também no sistema paralímpico e as estruturas de atletas e competições paralímpicas, toda essa estrutura por conta principalmente dos Jogos Olímpicos do Rio 2016, teve um grande investimento.
Todo esse sistema é financiado pelas loterias, então isso já existe há bastante tempo e promovem o esporte competitivo do país e tem avançado muito em termos de resultado, então é um bem nacional que leva a nossa bandeira, o nosso hino, que representa o Brasil fora e deve ser apoiado e será apoiado pelo ministério. E a pergunta aqui é mais ou menos o contrário, porque esse é um sistema muito desenvolvido e nós somos um país muito sedentário.
O que esse setor desenvolvido pode fazer para contribuir para que o país avance em termos de prática de atividade física pela população? Nossa pretensão e nesse primeiro semestre a gente está voltando com o Conselho Nacional de Esporte, um conselho que vai ser ampliado, que vai ter a participação da sociedade de uma maneira geral, para construir com todos esses entes o que a gente quer de futuro para o esporte desse país.
A gente tem a perspectiva de um Plano Nacional do Esporte, que está tramitando no Congresso e tem as metas ali, uma visão de futuro de 5, 10, 15 anos que queremos para o país por todas essas instituições que fazem parte de todo o ecossistema do esporte no país. A pretensão nossa é trazer todos para uma mesma mesa, colocar as questões, os ativos e os limites que a gente tem no esporte e construir a muitas mãos o desenho e aplicar isso nos próximos anos para que a gente avance em termos de prática pela população de saúde, desenvolvimento humano e resultados esportivos, com certeza.
Como será o envolvimento de outros ministérios para a consolidação desses planos?
Desde o início a gente tem a visão de que o recurso da pasta do esporte é limitado quando a gente pensa em atendimento direto à população, então nós nunca conseguiremos fazer em escala o atendimento de toda a população do esporte, mas podemos contribuir com outras pastas que fazem o atendimento direto, então pensando em crianças e jovens que estão na escola, quando a gente pensa em educação integral fatalmente se pensa em esportes e artes juntos nesse período da escola integral.
A relação com a educação tem acontecido nesse sentido. Da mesma maneira, o esporte e a atividade física como saúde preventiva, e aí a relação com o ministério da Saúde, que faz atendimento, que tem também profissionais de educação física nos seus quadros, e que atendem nas suas políticas de atenção básica, preventiva da saúde, a atividade física e o esporte estão presentes.
Assim como na segurança há várias estratégias de segurança pública, onde se promove o desenvolvimento comunitário, referências sociais para o engajamento de jovens em comunidades, o esporte está sempre muito presente. E todas são conversas, não são teorias só, lógico que a teoria e esse senso comum já existem há muito tempo, mas há nesse governo uma janela de oportunidades muito importante para realmente fazer com que essas intenções se concretizem na prática.
Então as conversas têm acontecido e nós estamos organizando em grupos de trabalho intersetoriais na forma de decretos, na forma de intenções formais do governo, trazendo essa intersetorialidade para o campo do fazer, concreto, isso está acontecendo. Então as expectativas são muito grandes para que a gente consiga fazer políticas de esporte junto com outras políticas sociais e alinhando um atendimento muito mais qualificado e completo à população como a gente espera.
Com a liberação de recursos para o ministério após a PEC da Transição, foi destinado o orçamento de R$ 1,9 bilhão de reais para este ano. O valor é suficiente para tocar os projetos?
É um pouco menos do que isso (R$ 1,9 bi), tem um valor gerenciado… Nesse ano de 2023 se lida com o passado, em grande parte, e boa parte do orçamento do ministério é relacionada diretamente com as emendas parlamentares. Então, existe essa vinculação e a condição de investimento direto do ministério e suas políticas é bem menor do que esse valor colocado.
É realmente curto, a gente tem que buscar parcerias e criar caminhos para que venham novos recursos para o esporte e esse é um caminho constante. O esporte sempre vai estar nessa luta, nesse caminho de buscar novos recursos e complementar com parcerias, porque é assim que é o desenho das coisas e nós, na verdade, já crescemos muito em relevância no esporte frente a outras políticas e acho que a gente está em um bom momento.
Mas é um caminho que, quanto mais a gente conseguir produzir em termos de impacto e realização, junto às outras pastas, que é a grande proposta do momento, mais vamos conseguir crescer em relevância e trazer mais orçamento para o esporte, que é necessário. Assim como para nós, para todas as pastas, a questão do recurso é realmente curto para todo mundo e, enfim, o caminho é sempre esse, buscar que se valorize mais, invista mais na nossa área, ao mesmo tempo que a gente tem que buscar construir soluções criativas e realizar, independentemente das condições.
O quanto se espera de apoio da iniciativa privada e como conseguir manter a regularidade desses investimentos? A proximidade dos Jogos Olímpicos da França 2024 é um fator de atração?
Olha, eu já vi várias fases. Foram 15 anos como atleta profissional, mais 20 anos como empreendedora social, lidando basicamente com patrocínio. O nosso projeto que eu fundei e dirigi trabalha basicamente com recurso de lei de incentivo, de empresas, então nosso orçamento aqui para lei de incentivo foi, no ano passado foi de R$ 500 milhões.
Esse ano vai ter mais recurso ainda. Essa relação é muito concreta, isso acontece, vai sempre acontecer, e há uma maturidade também do setor privado com relação a entender o esporte para além da alta competição, para entender o esporte na vida das pessoas, nas questões de desenvolvimento humano, nas questões de saúde.
Então, existem as duas questões: as de marketing, mais voltadas para a imagem de atletas e para o entretenimento, para a mídia, e mais voltada ao esporte de alto rendimento, mas também tem o entendimento de desenvolvimento do país, de desenvolvimento das suas comunidades, de responsabilidade social das empresas, então tudo isso está muito presente.
Até Copa e Olimpíada no Brasil trouxeram o esporte tão para a pauta da sociedade brasileira, que se falava de esporte… se falava de transporte, se fala de esporte, se falava de hotéis, se falava de esporte, então o esporte passou a ter um trato mais dentro da sociedade. Isso amadureceu o entendimento dentro desse fenômeno. Então, eu digo que a gente tem todas as possibilidades, inclusive até da participação das empresas estatais.
Investir no esporte de alto rendimento, que é a excelência do nosso esporte e também representatividade nacional. E investir no esporte como direito de todos, que é o que o país tem que construir como nação, de garantir o acesso a toda a população, aos melhores serviços sociais que o país possa prover a sua população.
Recentemente, ganhou destaque na imprensa o caso do jovem atleta Maurício Souza, que competiu na prova de 400m rasos do Campeonato Brasileiro sub-20 descalço. Depois se soube que o problema era mais o tamanho do pé e a dificuldade de encontrar uma sapatilha…
Pois é, o rapaz calça 47, realmente no Brasil não tem esse produto…
Mas independente disso, o que o ministério pretende fazer para oferecer melhor infraestrutura a quem está começando?
É lógico que o Ministério do Esporte tem que ter um olhar, uma responsabilidade sobre o entorno do esporte. Mas esse esporte de competição, mesmo de base, que é a categoria desse atleta juvenil, tem toda a estrutura do esporte das federações, confederações e Comitê Olímpico. então tem recurso, tem infraestrutura, tem planejamento que dá conta dessa parte do fenômeno esportivo, desta dimensão do fenômeno esportivo.
É lógico que o ministério do Esporte tem que ter um olhar para isso, regular e buscar alinhar metas, desempenho, expectativa de desempenho, lisura no uso dos recursos e tudo isso. E eu vejo como prioridade para o olhar do ministério todo o restante da população que não está efetivamente atendida.
Então, porque efetivamente o sistema de esporte de alto rendimento tem o foco restrito nesse recorte e já tem uma estrutura. E tem toda uma população para ser atendida, que acho que é o foco mais importante que o ministério tem de assumir e trabalhar para que o Legislativo assuma também essa prioridade, para que outros poderes estaduais e municipais também se juntem para dar conta desse atendimento. Eu vejo que funciona assim.
É lógico que nós temos que dar toda a cobertura e, no final das contas, temos a responsabilidade por essa política ampla do esporte, mas nós temos uma prioridade até para buscar atender quem nunca está sendo atendido, quem não está tendo o direito atendido.
Apesar de a prioridade ser mais universalizante, a senhora acredita que quando chegar a Olimpíada da França, o resultado vai ser também um reflexo do resultado do ministério? Há uma pressão?
É o esporte do país e com certeza o ministério tem a sua responsabilidade, mas a execução é feita toda pelo sistema federativo esportivo de confederações e COB.
Em outros ministérios também têm esse problema da herança deixada pelo último governo. A gente não tinha nem ministério do Esporte, que havia sido rebaixado para status de secretaria. Qual foi a situação que a senhora encontrou nesses primeiros meses?
O ministério do Esporte foi recriado e todos os cargos, praticamente, tiveram que ser recompostos. O Orçamento ainda não está na estrutura, ainda há algumas questões de contratos compartilhados como secretaria dentro do ministério de Cidadania.
Então essa questão estrutural e burocrática tomou muito do tempo desses 100 dias. A gente ainda não está com todos os cargos, mas agora é mais complementos, já tem uma boa estrutura especialmente decisória e racional de estratégica.
Foi um grande desafio nesses dias, mas nós já conseguimos trabalhar, já estamos há algumas semanas satisfeitos com o ritmo do trabalho e já com estratégias no Parlamento, estratégias internacionais, já com uma boa comunicação, já podendo nas secretarias também construir estratégias.
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O que teve de reconstruir… bom, os programas continuaram existindo, mas sem recurso, então o recurso é algo que continua faltando, é uma questão muito mais de fazer um alinhamento com a nova equipe para estratégias dessa gestão e um compartilhamento das propostas com o próprio setor.
Esse é o grande desafio desses primeiros meses, talvez do primeiro semestre, mas nós temos já um compromisso com mostrar serviço, resultados, propostas não só no discurso, mas na prática. E enquanto a máquina governamental, que é um pouco mais lenta, e as leis estão sendo aprovadas no Congresso, esse primeiro ano é um ano de fazer projetos-piloto, articulação com estados e municípios parceiros para ir a campo e desenvolver, em campo, as políticas de implantação do sistema nacional de rede.
Então, os projetos-piloto, nesse primeiro ano, são as prioridades do ministério e a gente está buscando que todas as áreas articulem com o mesmo objetivo para construir uma política que seja compartilhada em todas as áreas, desde o rendimento até o esporte-lazer, passando pelo futebol, e é isso que estamos fazendo nesse primeiro ano.
Uma das primeiras polêmicas da sua gestão foi essa questão dos esportes digitais e foi sinalizado em outras oportunidades de que será feito um trabalho interministerial. Como esse assunto está avançando?
A gente está para anunciar um grupo de trabalho e tal, não teve a primeira reunião ainda. Quando tiver a primeira reunião, a gente vai anunciar, mas é uma política intersetorial para um fenômeno que são os jogos eletrônicos.
Esse governo, que se diz mais inclusivo e favorável à diversidade, tem refletido sobre outro tema bastante polêmico que é a participação de atletas trans em esportes de alto rendimento? Esse tema está presente no ministério?
Ele (o tema) está presente onde tem que estar presente. Acontece que, por conta de uma discussão que diz respeito a um pequeno recorte… toda a disputa ideológica acaba reverberando negativamente na comunidade, porque se tem um número limitado de pessoas trans que estão no esporte de rendimento, você tem um número muito maior de pessoas que estão fora do esporte e que acabam sendo prejudicadas por disputas ideológicas no campo até político.
Dentro da política você tem esse tema, que é um campo de disputa e que, na prática, o sistema competitivo é regrado pelas federações internacionais. Cada modalidade define a sua política dentro de uma orientação mais ampla, de um guarda-chuva colocado pelo Comitê Olímpico Internacional, e toda essa experiência é baseada em experimentações científicas, em parâmetros científicos.
Nós acompanhamos isso e, por outro lado, você tem a questão social, você tem que permitir o direito de participação, de respeito e de inclusão para a comunidade e para as pessoas trans. É dessa maneira que esse governo lida, respeitando as questões esportivas e respeitando as questões sociais, com a consciência de que a parte competitiva pode ser mais visível, mas tem muito mais gente que está fora do esporte e que precisa ser mais bem atendido, precisa ser incluído, respeitado.
A gente tem que ter muito cuidado quando coloca essa questão e precisa sempre colocar as coisas nos seus lugares. É um tema que ainda bem está presente, porque precisa ser tratado e estamos tratando da melhor maneira. E todas essas políticas, aí você pode falar nas questões de gênero, de mulher, raciais, das populações menos favorecidas, menos atendidas, não necessariamente minoritárias, porque a comunidade negra não é minoritária, as mulheres não são minoritárias, mas são tratadas como…
Todas essas políticas são universais, transversais a todas as ações de esporte, elas têm que ser. E quando a gente fala no esporte nos territórios, acontecendo nas cidades, todas essas questões estão presentes. Então, se nós temos que incluir a todos, temos que tratar com todas essas diversidades que estão presentes na nossa população e o esporte tem que funcionar da mesma maneira.
Edição: Rodrigo Durão Coelho