Primeiro procurador-geral da República escolhido de fora da lista tríplice desde 2003, Augusto Aras encerra nesta terça-feira (26) sua gestão de quatro anos à frente da chefia do Ministério Público Federal marcado pelo alinhamento com o governo de Jair Bolsonaro e por ter arquivado várias denúncias e investigações envolvendo o ex-presidente e seus aliados, sobretudo durante a pandemia de Covid-19 que, no Brasil, deixou mais de 700 mil mortos.
Levantamento feito pelo jornal O Globo mostra que foram ao menos 70 pedidos de inquérito envolvendo o ex-presidente arquivados pela gestão de Aras. Se considerados os pedidos de investigação contra o ex-presidente, fase anterior a instauração de inquéritos, os números são até maiores, passam de 104 os pedidos de arquivamento, segundo levantamento feito pelo portal UOL. Especialista e até membros do Ministério Público Federal ouvidos sob anonimato afirmam que a omissão em relação ao chefe do executivo e o mal-estar interno causado por isso é a marca deixada pela gestão de Aras. “Não tem como falar de outra coisa, as omissões foram muito significativas, e, diferente de Geraldo Brindeiro, que ficou com a fama de ‘engavetador’, mas era próximo da carreira e querido pelos pares, Aras nunca se aproximou, de fato, da carreira”, afirma um membro do MPF.
Dentre as acusações contra o ex-presidente que foram arquivadas a pedido da gestão de Aras estão episódios que envolvem suspeitas de prevaricação, emprego irregular de verba pública, infração a medidas sanitárias e epidemia com resultado de morte apontadas pela CPI da Covid.
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Para o advogado criminalista e professor de Direito Penal da Universidade São Judas Tadeu, André Lozano, a postura de Aras pode ser vista como consequência de dois aspectos que marcaram sua chegada ao posto de chefe do Ministério Público Federal: o fato de ter sido escolhido fora da lista tríplice e também de almejar ser indicado ao Supremo Tribunal Federal por Bolsonaro. “Quando Jair Bolsonaro nomeou alguém de fora da lista ele buscava alguém submisso a ele, que de fato seguisse e atendesse aos desejos do presidente”, afirma o professor.
Para ele, Aras não exerceu a função de Procurador-Geral da República da forma que se espera de um PGR, com a independência que seus antecessores tiveram em relação ao governo federal, e fez jus ao apelido de “engavetador”. “Foi uma gestão que não vai trazer um grande marco, não vai ser como a da Raquel Dodge ou do Rodrigo Janot que, de fato, erraram muito, mas erraram tentando acertar com muita independência. A principal questão da gestão Aras é sua quase subordinação ao presidente da República”, prossegue.
Aras assumiu a PGR em 2019 após anos de atuação do Ministério Público Federal marcado pela operação Lava Jato e seus desdobramentos, com grandes operações policiais midiáticas e denúncias contra políticos que foram questionadas pelos seus métodos polêmicos e anuladas posteriormente pelo Supremo Tribunal Federal. Ainda que o MPF tenha ultrapassado limites, Lozano acredita que Aras “perdeu a mão” ao evitar ações contra Bolsonaro e seus aliados. “É difícil para o Ministério Público buscar um equilíbrio. Ele não pode acusar a qualquer custo. Tem que ser firme sem abusar, mas tem que atuar dentro da legalidade sem ser leniente. Aras perdeu a mão nesse sentido, foi uma atuação muito tímida. Devia ter buscado um Ministério Público que não ficasse tão dependente do poder Executivo”, afirma.
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Para Lozano, porém, dificilmente Aras poderá ser penalizado por eventuais omissões, já que, segundo o professor, todas as decisões e argumentações do agora ex-PGR tiveram embasamento jurídico. “O entendimento dele, bem ou mal, é alicerçado juridicamente, mas isso não quer dizer que ele tenha atuado de forma correta”, assinala o professor.
Reflexos no STF
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A postura da gestão de Aras chegou a causar incômodo até nos ministros do Supremo Tribunal Federal. No mês passado, por exemplo, o ministro Alexandre de Moraes autorizou uma operação da PF contra empresários bolsonaristas que defenderam golpe de estado em um grupo de WhatsApp sem consultar antes a PGR, como é de praxe em operações deste tipo. Em outra ocasião, o ministro autorizou operação de busca e apreensão na residência de Jair Bolsonaro para investigar o episódio de fraudes no cartão de vacinação do ex-presidente, mesmo com a PGR se manifestando contra as buscas no endereço de Bolsonaro.
Em outra ocasião, a ministra do Supremo Tribunal Federal, Rosa Weber, rejeitou o pedido da PGR para arquivar três inquéritos contra Bolsonaro decorrentes da CPI da Covid, que investigou os malfeitos do governo federal no combate à pandemia durante a gestão de Bolsonaro. A decisão é incomum, pois, via de regra, quando a PGR pede o arquivamento de determinado inquérito a Justiça tem que aceitar.
Não só em relação ao executivo, mas também em relação a alguns políticos do Centrão, como o presidente da Câmara Arthur Lira (PP-AL) e o ex-ministro da Casa Civil de Bolsonaro, Ciro Nogueira (PP-PI) a gestão Aras adotou iniciativas para poupar os políticos. No caso do presidente da Câmara, a PGR, sob o comando de Aras, recuou de uma denúncia que ela mesma havia apresentado em 2018, na gestão Raquel Dodge, que acusava Lira de corrupção e lavagem de dinheiro e pediu o arquivamento do caso. Em relação a Ciro Nogueira, a PGR contrariou o entendimento da Polícia Federal e pediu o arquivamento de uma investigação contra o senador por suspeita de corrupção.
‘Narrativas’ e crise interna
Nos últimos dias de sua gestão, Aras divulgou números e dados para defender sua atuação, tendo inclusive publicado um livro para mostrar como a PGR teria “salvado vidas” durante a pandemia de Covid-19. Em seu discurso de despedida no plenário do STF no último dia 21, Aras afirmou ter sido alvo de “narrativas inverídicas” sobre sua atuação à frente do Ministério Público. “Os desafios dos últimos quatro anos foram adicionalmente cercados por incompreensões e falsas narrativas, dissonantes com o trabalho realizado, documentado e publicizado, e agora também organizado no relatório final de gestão que recém divulgamos”, afirmou o então procurador-geral da República.
Sua gestão também divulgou recentemente que pediu o arquivamento de 120 inquéritos pedidos contra o presidente Lula, seus ministros e familiares somente neste ano.
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Mesmo dentro do Ministério Público Federal, porém, sua postura causou mal-estar, inclusive com acusações de perseguição internas. “Que o próximo PGR não use o CNMP para perseguir colegas ou para subverter decisões internas do MPF quando a posição do PGR não prevalecer”, afirma um membro da PGR ouvido sob anonimato.
Por outro lado, membros do MPF reconhecem que a gestão de Aras conseguiu uma importante recomposição de verba para o orçamento do órgão, além de avanços administrativos, como a regulamentação do teletrabalho. Graças a uma reclamação movida por Aras no Tribunal de Contas da União alegando que houve um erro ao calcular o orçamento para o MPF no ano em que o teto de gastos foi instituído pelo governo federal, em 2016. Segundo a PGR, a partir dessa iniciativa, a gestão conseguiu uma suplementação para o orçamento do MInistério Público da União de cerca de R$ 900 milhões até 2023. Além disso, a gestão de Aras fez aportes de R$ 221 milhões para evitar a insolvência do plano de saúde que atende todos membros e servidores do órgão e seus familiares, um contingente de cerca de 50 mil pessoas atualmente.
Questionada nos últimos dias sobre os números da gestão, a assessoria da PGR tem divulgado um trecho do discurso final de Aras no Supremo: “Nossa missão não é caminhar pela direita ou pela esquerda, mas garantir, dentro da ordem jurídica, que se realize justiça, liberdade, igualdade e dignidade da pessoa humana”.
Edição: Vivian Virissimo